domingo, 15 de junho de 2008

(...)

(aguarde)

domingo, 8 de junho de 2008

O destino de Jorge Luis

O barulho dos convidados estava recheado de um constante murmurinho de conversas de todos os tipos, sons de talheres roçando os pratos e as tigelas, tilintar de copos em brindes diversos e ruídos de passos, como é próprio desse tipo de festa, em que familiares e amigos reúnem-se para comemorar alguma data de caráter bastante especial, mas, levados por valores quiçá discutíveis, deixam-se levar pelas aparências e mostram-se em toda espécie de poses, sorrisos amarelos e roupas da moda; em toda sorte de intelectualidades vulgares, através dos mais variados tipos de discussões – “Você vai me desculpar, tio Jonatas, mas a questão principal nessa crise econômica é a falta de investimentos do governo no setor agrícola”; “Não, nada disso, Denise: Nietzsche não era ateu, apenas denunciava os abusos do cristianismo” – ; ou, simplesmente, desfiando posições sociais das mais invejáveis possíveis.

Foi justamente para escapar dessas situações incômodas que Jorge Luis mal se fez presente na casa dos avós e já estava subindo velozmente as escadas em busca de um local mais sossegado, mais recolhido. Encontrou o abrigo que procurava no escritório do avô, que misteriosamente achava-se destrancado. Seu Gabriel, o avô de Jorge Luis e, por sinal, também o aniversariante do dia, fazia de seu escritório uma espécie de refúgio da arte em sua casa: duas das paredes eram, em toda sua extensão, repletas de livros, fossem eles filosóficos (alemães numa prateleira, franceses noutra, ingleses e autores clássicos mais adiante), fossem livros técnicos – havia desde livros de Cálculo, Física e Química até volumosos tomos de Direito, e até mesmo coleções completas de Biologia e Anatomia – ; mas, em sua grande maioria, eram os livros puramente literários que dominavam o ambiente (dos gregos até a literatura brasileira contemporânea); nas duas paredes que não continham livros, cópias de pinturas famosas ocupavam estratégicos espaços, a Mona lisa , O Grito e o Rembrandt Lição de Anatomia do Dr. Tulp na parede oposta à entrada; na parede contrária a esta, expunham-se quadros mais contemporâneos: Les Demoiselles d'Avignon, A persistência da memória, Os retirantes; há um canto, espalhavam-se alguns instrumentos musicais: um contrabaixo, dois violinos, uma flauta doce, um saxofone, um violão, duas gaitas e um oboé; estes fechavam a vista, para quem entrava, às quatro fileiras de cd’s e uma de vinis, que seu Gabriel coletara em sete décadas vividas: música erudita, jazz, blues, MPB e clássicos do rock progressivo.

Jorge Luis, que praticamente crescera na casa dos avós, e muitos e marcantes momentos vivera com o avô naquele escritório, seguiu o mesmo ritual que invariavelmente seguia ao entrar ali: passou algum tempo admirando as pinturas (em particular, A persistência da memória, pelo qual ele era fascinado – aliás, por toda a obra de Dali) e, em seguida, dirigiu-se ao canto dos instrumentos musicais, pousando sua mão ansiosa sobre o saxofone, uma de suas paixões. O pai dele, Miguel Ângelo, filho de seu Gabriel, que executava o violino com maestria, tentara influenciá-lo a também tocar violino, mas Jorge Luis, apesar de ter aprendido alguma coisa, dedicara seu amor ao sax, que era também o instrumento favorito de seu avô. Após tomar o sax em suas mãos, o rapaz começou a tocar, com uma interpretação acima da média, o solo de sopro de Money, do Pink Floyd.

– Esse é um dos solos de sax que eu mais gosto.

Assustado por ter sido pego de surpresa num momento em que tocava de forma, digamos, mais íntima, Jorge Luis virou-se rapidamente para ver quem falara e deu de cara com o sorriso satisfeito de seu Gabriel, que o observava da entrada do escritório.

– Há quanto tempo você está aí? – perguntou Jorge Luis, aliviado por ver que não era nenhum desconhecido.

– Digamos que acompanhei a sua exímia apresentação quase que por inteiro – respondeu seu Gabriel, com um brilho quase malicioso no olhar, enquanto ia na direção do neto.

– Ah, sacanagem, vô! Eu nem devia parabenizar o senhor agora, o senhor sabe que eu não gosto de ser observado quando estou tocando... – pilheriou o rapaz, levantando-se em seguida, dando um forte abraço no avô e parabenizando-o, apesar da brincadeira.

– Muito obrigado, muito obrigado, meu neto – agradeceu seu Gabriel, contente. – Mas, me diga: você também está fugindo da balbúrdia lá de baixo?

O garoto deu uma gargalhada ligeira. “Você me conhece mesmo, né, vô? Sabe que eu não gosto de multidões.” Ao que o avô respondeu: “Eu também não, Jorginho, mas você sabe como é sua avó: pra ela, uma data dessas jamais poderia passar sem uma festança digna. ‘Não, não, Gabriel, setenta anos exigem uma verdadeira celebração’, foi o que ela disse.”

E eles ficaram assim, conversando amigavelmente, o avô e o neto, enquanto ninguém vinha atrás de ambos perguntar-lhes por que não estavam no andar de baixo como todos, já que um era o próprio aniversariante e o outro completaria a maioridade no dia seguinte, o que os tornava as personagens principais da noite. Jorge Luis estava feliz, escutando as sempre sábias palavras de seu Gabriel e rindo sempre que ele fazia uma de suas piadas sutis, mas notava alguma coisa de diferente no semblante de seu avô, qualquer coisa que ele (o avô) não procurava disfarçar, como se quisesse mesmo que Jorge Luis percebesse essa diferença. Não suportando mais aquela dúvida e, dada a intimidade que havia entre os dois, o rapaz indagou ao avô se havia alguma coisa que o estava perturbando.

Seu Gabriel, ao ouvir a pergunta, sorriu; um sorriso daqueles que alguém dá quando já espera que alguma coisa aconteça, como quem sabe o que virá em seguida. Não disse nada por alguns instantes, depois foi até a porta dupla e, observando antes de ambos os lados para ver se não havia ninguém por perto, fechou as portas, retornando ao local em que estava sentado, e tornou a perscrutar os olhos do neto. Este, não se pode dizer que estava preocupado, mas tampouco a tranqüilidade mostrava algum sinal em sua fronte: uma ansiedade desmedida tomou conta de seus pensamentos, e ele se perguntava que coisa era aquela o avô tinha para lhe dizer que exigia tamanha cautela.

– Tenho uma história para lhe contar, Jorge Luis – iniciou o avô. – Uma história que vai mudar a sua vida.

Ao ouvir isso, a ansiedade do rapaz atingiu um grau tão elevado que seu coração começou a palpitar mais rápido, pá-pum, pá-pum, pá-pum, numa velocidade poucas vezes alcançada. Ele não disse nada, apenas fez um movimento quase imperceptível para que o avô prosseguisse.

– Apesar do teor fantástico do que irei lhe contar ­– recomeçou seu Gabriel – , não pense que se trata de uma piada ou de qualquer invencionice nascida da loucura ou da decrepitude; você bem sabe o quanto seu avô ainda é lúcido, e que, quando o assunto é sério, as brincadeiras não encontram eco em minhas palavras. – Nesse ponto, ele parou novamente de falar, olhando diretamente nos olhos de Jorge Luis, de modo a fazê-lo compreender que realmente não se tratava de um logro ou de uma peça, e, percebendo que o neto entendera, continuou. – Esclarecido isto, ouça o que tenho a lhe dizer:

“Certo dia, há exatos quarenta e nove anos e um dia, eu tive uma conversa com o meu próprio avô, assim como estamos tendo esta conversa agora. Ele também estava completando setenta anos naquela data, e eu faria vinte e um anos no dia seguinte, assim como eu e você, neste momento. E ele me contou quase a mesma história que tenho para lhe contar agora. Uma história que fala sobre toda uma vida que tivemos fora desta realidade, e que você também terá.

“Este é meu último dia de vida." Nessa hora, Jorge Luis fez menção de dizer algo, mas seu Gabriel deu a entender que ele deveria apenas escutar por enquanto, o que o garoto obedeceu. "Não tema: nós ainda passaremos quarenta e nove anos juntos, no lugar que o aguarda. Amanhã, eu morrerei, mas, para você, este amanhã tardará a chegar. Porém, deixe-me continuar.

“Após a conversa com meu avô, eu fiquei muito perturbado; não sabia se o que ele me contara não passava de uma fantasia ou se realmente tinha um quê de verdade, e eu também nem sabia o que me assustava mais. Por conta disso, demorei a dormir aquela noite, mas quando o consegui, uma surpresa: assim que cerrei os olhos, estes se abriram novamente, mas eu não mais me encontrava em minha cama, em meu quarto; estava deitado numa cama de palha dentro de uma cabaninha, com uma janela ao meu lado, de onde um sol incompreensível me convidava a desfrutar dos prazeres da manhã.

“Ainda deveras perturbado com aquela cena, que não tinha o menor aspecto de sonho, fui surpreendido com o aparecimento de meu avô à soleira da porta, vestido com uma túnica que muito se assemelhava às dos mestres da Antiguidade. Ele se sentou na beirada de minha cama e me reafirmou tudo o que tinha me contado algumas horas antes: que eu não devia ficar preocupado, que aquilo não era um sonho ou uma ilusão, que eu passaria quarenta e nove anos com ele naquela paisagem rústica e que envelheceria conforme a minha natureza pessoal, mas que quando retornasse a minha vida original, eu despertaria como de uma noite de sono comum, como se nada tivesse acontecido, a não ser pelas lembranças em minha mente. E o mais importante: que, durante todo esse tempo, eu aprenderia todas as atividades que possibilitariam que eu me tornasse um mestre também, se eu quisesse: aprenderia diversas técnicas meditativas e outras práticas místicas; dominaria vários tipos de artes marciais e como utilizá-las para conhecer meu próprio eu e controlar meus sentimentos e minhas paixões; instruir-me-ia também em artes plásticas, música, técnicas de sobrevivência e em qualquer habilidade proveitosa para o restabelecimento do Ser e da paz de espírito. Tudo isso, como ele já me havia dito, no intervalo de quarenta e nove anos.”

– E assim, meu neto, eu passei quarenta e nove anos numa outra realidade, treinando com meu avô e, quando o treinamento chegou ao fim, retornei à mesma idade que tinha, no mesmo local em que estava anteriormente à partida, como se todos estes anos correspondessem a apenas algumas horas nesta realidade, e passei outros quarenta e nove anos de existência, até chegar a este momento, em que devo prepará-lo para ser o novo discípulo.

Terminada a história, a mente de Jorge Luis transbordava de dúvidas, tantas que ele nem sabia por onde começar. Aquilo era realmente verdade? Como isso era possível? Se sim, por que ele? Por que o avô? Quem estava por trás dessa “viagem”? Que tipo de mistério se escondia nessa história mirabolante, que magia enigmática era esta? Quanta coisa o avô sabia durante todos estes anos, e simplesmente nunca revelara ao neto, ou a qualquer outra pessoa?

Antes que Jorge Luis pudesse metralhar o avô com todos estes questionamentos e muitos outros mais, a porta se escancarou e D. Isabel, avó de Jorge Luis e esposa de seu Gabriel, entrou esbaforida na sala, resmungando que neto e avô deveriam estar lá embaixo com todos, que ela já estava procurando por eles há quase vinte minutos e que já iriam cantar o parabéns, só faltavam o aniversariante e seu neto, e que era melhor que eles se apressassem. E saiu de novo, atarantada, deixando os dois novamente a sós.

– Eu sei que você tem todo o tipo de perguntas a me fazer agora – disse seu Gabriel, depois que D. Isabel afastara-se o suficiente –, mas elas não são necessárias, ou oportunas: você terá muito tempo para fazer qualquer indagação em breve, muito em breve. Só lhe peço que você não revele em hipótese alguma a ninguém o assunto sobre o qual conversamos. Mas venha, venha; não vamos deixar sua avó mais chateada, vamos descer.

Jorge Luis ficou observando o avô se levantar, caminhar até a entrada do escritório e estacar, como se aguardasse que o neto o acompanhasse. Ele permaneceu ainda alguns segundos pensando, muito confuso, mas resolveu levantar-se e seguir com ao avô. Afinal de contas, o que quer que fosse lhe acontecer, aconteceria em poucas horas, e ele tinha paciência para aguardar.

domingo, 25 de maio de 2008

Eu sou Você

– Eh... Com licença...

– Pois não?

– Eu queria te dizer uma coisa... Posso?

– Que coisa?

– Uma coisa.

– Hm... Pode, pode sim. O que é?

– Bom, eu sei que é meio estranho te dizer isso...

– Não, não, pode falar. Agora eu fiquei curioso.

– Tem certeza?

– Não foi você que disse que queria falar? Então: agora fala.

– É verdade... Bom, então lá vai...

– Sim?

– Eu sou Você.

– O quê?

– Eu sou Você.

– Você sou eu? Como assim?

– Ora, é isso mesmo que você ouviu: eu sou você, você sou eu.

– Eu não sou você.

– Claro que é. Nós estamos sendo escritos pela mesma Pessoa.

– Como assim, “escritos”?

– Há Alguém escrevendo o que estamos falando.

– Você é doido...

– Então você também é doido. Nós somos doidos.

– Ai, ai, é cada uma que me aparece... Olha só, é o seguinte: eu vou te dar uma chance de provar que o que você ta falando é verdade.

– Tudo bem, provarei. Começo lhe fazendo uma simples pergunta: onde você estava antes?

– Antes?

– É, antes. Antes de eu falar com você.

– Eu estava ali.

– “Ali”, onde?

– Ora... Ali!

– Você está me enrolando. Você não sabe onde estava!

– Claro que sei.

– Onde?

– Ta bom. Suponhamos que você esteja certo e eu não saiba onde estava. O que isso prova?

– Prova que você não sabe onde estava porque só começou a existir assim que Ele começou a escrever.

– “Ele”, quem?

– Ele. O Autor.

– Você é louco...

– Não sou louco. Pense um pouco: você está aqui agora conversando comigo e não tem a menor idéia de onde estava antes. De repente, eu o chamei e nós iniciamos este diálogo. Que é na verdade um monólogo. Do Autor.

– Você está me deixando confuso...

– Desculpe. Mas é a verdade.

– Será?... Como você pode ter certeza?

– Através da intuição e do raciocínio. Veja, vamos continuar com a prova: onde você está agora?

– Agora...? Eu... Eu... Eu não sei!

– Está vendo? Você nem sabe onde está agora mesmo. Mas não se desespere, ainda há mais uma perguntinha a ser feita, pra finalizar: quem é você?

– Ah, meu Deus... Eu também não sei! O que é isso? Como posso não saber todas essas coisas?! Como posso não saber de onde eu vim, onde estou e quem eu sou? É impossível!

– Não é impossível. Está acontecendo agora.

– VOCÊ QUER ME DEIXAR MALUCO? É ISSO?

– Não, sinto muito... Minha intenção era simplesmente alertá-lo sobre estas coisas e dizer que nós somos a mesma Pessoa.

– Tudo bem, me desculpe... Eu me exaltei. Mas é que é tão difícil... Eu nunca poderia imaginar...

– Eu sei, eu sei... Também passei por isso.

– Hm... Me fale mais sobre o Autor.

– Não sei muito sobre Ele. Apenas que Ele está nos escrevendo.

– Ele está nos escrevendo mesmo agora? Neste instante?

– Sim. Cada palavra.

– Fascinante... Como Ele faz isso?

– Bom, parece que antigamente Ele usava uns instrumentos divinos chamados Caneta, ou Lápis, ou Pena, e Papel. Escrevia com o Lápis (ou a Caneta ou a Pena) no Papel. Mas, hoje em dia, acredito que estejamos sendo digitados.

– “Digitados”?

– Isso. Escritos por um Teclado, no Computador.

– Quer dizer que estamos, agora, no Computador?

– É o que eu acredito.

– O que é um Computador?

– Isso eu ainda não sei.

– Minha nossa... Tudo isso é muito novo pra mim, nem sei o que pensar.

– Pois é...

– Mas, vem cá, você não disse que eu sou você?

– Sim, porque estamos sendo escritos pela mesma Pessoa.

– Então nós somos o Autor?

– Não. O Autor é nós dois ao mesmo tempo, mas nós não somos o Autor. Ele é e pode ser qualquer coisa que quiser. Basta Ele escrever.

– Mas por que Ele quis ser, escrever, sei lá, nós? Pensando bem, por que Ele escreve?

– Você tocou o cerne da questão. Acho que isso nunca saberemos ao certo. Só podemos fazer suposições, enquanto não chega o Fim do Texto.

– “Fim do Texto”?

– É. Quando Ele pára de escrever.

– E Ele pára de escrever?

– Sim. Eventualmente.

– E o que acontece conosco?

– Não sei.

– Como, você não sabe? Você sabe tantas coisas e não sabe o mais importante?

– Na verdade, acho que foi o contrário: mostrei que não sabemos nada.

– Não entendo...

– Você parece que já assimilou algumas coisas, mas ainda não compreendeu o essencial. Eu sou Você. Eu passei a existir na mesma hora em que você, talvez um pouco antes, mas somente quando o Autor começou a escrever. Não faço a menor idéia de por que eu sei algumas coisas e não sei outras, eu simplesmente sei. Porque Ele quis! O motivo d’Ele o querer, eu não sei.

– Mas isso já é demais... Estou a ponto de enlouquecer...! Já não bastava não conhecermos nossa origem ou quem somos nós ou nem sabermos onde estamos, já que nada adianta sabermos que estamos no Computador e não sabermos o que é o Computador; ainda temos que conviver com o fato de que uma hora chegaremos ao Fim do Texto e nem sabemos pra onde vamos depois!!!

– E nem o porquê de tudo isso.

– Exato! Nem isso! Saber que a qualquer instante o Texto pode acabar e que estas podem ser minhas últimas Palavras... E se minhas últimas Palavras forem sem sentido, sem nexo, um amontoado de pensamentos inúteis ao fim de um diálogo sem motivo, que começou ao acaso, um...

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Velho medo

Pense um pouco: se você visse uma criança sofrendo maus-tratos nas mãos de um de seus pais, você se perguntaria se aquele pai realmente teria condições de cuidar da criança, não? Num ímpeto mesmo, poderia querer arrancá-la das garras do inconseqüente pai ou da desnaturada mãe, certo de que este não tinha mais direito de cuidar do filho. E ainda que você fosse insensível a ponto de reagir com indiferença a uma visão destas, jamais o poderia fazer o Estado: como determina o Estatuto da Criança e do Adolescente, “é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”. Partindo desse princípio, o Estado não só não permaneceria alheio ao incidente como poderia até destituir a guarda da criança.

Pensado isto, é possível fazer a seguinte analogia: o governo brasileiro, em certa medida, é como se fosse uma espécie de “pai”, de “tutor” de todas as instâncias as quais fica a seu cargo administrar, desde a vida de seus cidadãos até as eventuais necessidades dos Estados; sem dúvida, nessa lista, entraria também o zelo por regiões de grande interesse estratégico e ambiental, como a Amazônia, a maior e mais importante floresta equatorial do mundo, tratada com tanto descaso pelas nossas autoridades. Ou seja: em nossa discutível analogia, o governo brasileiro seria como um pai indiferente e cruel que, se não maltrata, permite que outros continuamente maltratem sua filha Amazônia, à vista de todos. E, também nesta situação, há quem pense que este continental pai não mais deveria prosseguir como tutor incondicional de sua filha...

Também pudera. Deixando a alegoria inicial de lado, a Amazônia é um território de suma importância mundial, não apenas pela sua imensurável diversidade animal e vegetal ou por suas encantadoras belezas naturais, mas também porque pode esconder em sua fauna segredos que poderão ser muito úteis para a humanidade – entre vários outros fatores, claro – , e o Brasil, país que contém dentro de seus limites geográficos 60% da floresta amazônica, vem miseravelmente falhando em conter o avanço do desmatamento e da poluição na região, pondo em risco este ecossistema de valor inestimável para os brasileiros e, principalmente, para o planeta Terra. Por isso, seria muita ingenuidade nossa acreditar que as nações que mandam no mundo – o G-8 – permanecerão de braços cruzados enquanto observam-nos destruir a Amazônia e todas as suas possibilidades. Se o ritmo de desflorestamento continuar aumentando nessa velocidade, é quase garantida uma invasão estrangeira, por mais que os verdadeiros motivos por trás de uma ação dessas fossem outros, mais mesquinhos e abjetos: insistindo na destruição, estaríamos dando o pretexto que faltava para estas ambiciosas nações finalmente pusessem as mãos nas cobiçadas riquezas amazônicas.

E é até possível que a temida invasão se torne realidade mais cedo que imaginamos, e nem precisamos recorrer ao fato de que a quantidade de ONG's estrangeiras atuando na região já pode ser considerada uma invasão: recentemente o New York Times indagou “inocentemente” a quem pertence a Amazônia e disse que "ao contrário do que os brasileiros acreditam, a Amazônia não é propriedade deles, ela pertence a todos nós". Em resposta, o novo ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, declarou que "Quem faz uma proposta dessas deveria passar por uma requalificação psicológica, tal o disparate que contém. Os donos (da Amazônia) somos nós", numa tentativa de encerrar uma discussão que só tende a ficar cada vez mais complicada nos próximos anos, em virtude de uma necessidade cada vez maior de recursos energéticos e por conta da crescente discussão em torno dos efeitos do aquecimento global e da poluição no clima mundial.

Num cenário como esse, não é de todo estranha a notícia de agressão sofrida por um engenheiro da Eletrobrás por um grupo de índios caiapós, durante o encontro que discute a possível construção da hidrelétrica de Belo Monte no rio Xingu, afluente do glorioso Amazonas. Talvez seja mesmo uma imagem de teor emblemático. Paulo Fernando Rezende, o engenheiro, que defendia a instalação da hidrelétrica, foi atacado com golpes de facão e espancado pelos índios, uma atitude que deve ser execrada, jamais vista como algo louvável. Mas não se pode permitir que ela seja utilizada como uma tentativa de desmerecer o ponto de vista defendido pelos caiapós, apenas uma das diversas etnias indígenas que vivem às margens do Xingu e que teriam que ser deslocadas do lugar em que vivem a gerações para que a tal hidrelétrica fosse produzida. Hidrelétrica esta que, ao contrário do que diz o governo, não está sendo construída para benefício da população brasileira, muito menos da paraense, visa apenas fornecer energia para as empresas mineradoras da região, que poluem e saqueiam o meio ambiente no qual estão inseridas sem que sequer tragam qualquer compensação econômica para a região ou melhoria na qualidade de vida do povo do Pará.

A mídia, sempre tendenciosa, omite as questões mais importantes, implicitamente defendendo a construção da hidrelétrica, sem ligar para todos os problemas que ela irá gerar, a despeito do pouco que contribuirá para o país. É possível que, mais uma vez, ela esteja defendendo interesses escusos, provavelmente estrangeiros, participando ativamente da filosofia de vida que rege a maior parte da elite brasileira, que é a de vender o país em troca de um lucro insensato e inconseqüente, entregando nossas riquezas de mão beijada a qualquer um. E nós aqui, correndo o risco de ver o velho medo de que a Amazônia seja controlada por outros países tornar-se uma triste realidade.

Impotentes.

domingo, 18 de maio de 2008

O paranóico

Encontraram-no escondido num matagal em meio a arbustos e palhas, enroscado em cipós e urzes, com arranhões e cortes diversos espalhados pelo corpo. Seu olhar denunciava um desequilíbrio mental proeminente e, enquanto era arrastado dali pelos homens da clínica de “repouso”, gritava histericamente o motivo de sua permanência naquele esconderijo:

– Me larguem, ele está aqui! O Predador está aqui, está me seguindo!

É preciso que dois fatos sejam ressaltados antes de prosseguir com a narrativa: em primeiro lugar, sim, o ‘Predador’ a que Vincent se referia era realmente o guerreiro extraterrestre fictício dos filmes O Predador, aquele com cabelos em forma de dreadlocks, mandíbula parecida com a de um caranguejo e cara de poucos amigos; em segundo, não era a primeira vez que ele era acometido daquele surto paranóico que o levava a buscar refúgio em lugares insólitos, pensando que havia alguém ou alguma criatura à espreita, perseguindo-o.

Nunca se soube ao certo como aquele problema psíquico se iniciara. A mãe dele, D. Lucy, punha a culpa nas drogas. Meses depois que descobrira que seu filho fumava maconha e sabe Deus o que mais, fora surpreendida pelo primeiro contato que teve com a doença de Vincent, quando este passou mais de dez horas trancafiado em seu quarto com medo de um assassino que – Vincent tinha certeza – estava oculto na vizinhança, esperando um vacilo de sua parte para matá-lo. Foi preciso que seu Josh, o pai, arrombasse a porta do quarto do filho para tirá-lo de lá.

Durante alguns dias, chegara-se mesmo a acreditar que poderia haver um bandido ou um criminoso qualquer tentando de fato matar Vincent, talvez em decorrência de um desentendimento com traficantes ou algo do tipo. Mas como a polícia jamais encontrara vestígios de um assassino em potencial nas redondezas, nem o rapaz parecia dar alguma indicação verossímil para a existência de tal personagem, a hipótese de pura fantasia mental ganhara força e terminara por sobrepor-se a qualquer outra possibilidade quando, semanas após a primeira manifestação crítica da paranóia persecutória, ele tivera um novo ataque, dessa vez fugindo em disparada da praça onde passeava com sua mãe, alegando que o assassino encontrava-se em algum dos prédios que os cercavam e de lá apontava uma sniper direto para sua cabeça. Ele até vira o laser vermelho da mira da arma em certo momento.

Assustada e sem saber o que fazer para ajudar o filho, D. Lucy pedira conselhos a amigas e estas lhe indicaram a clínica psiquiátrica do Dr. Leary, um eminente especialista em casos como aquele, bastante competente e discreto. Ela o procurara e, poucos dias após este encontro, Vincent estava sob a tutela do referido doutor, no Instituto de Recuperação Psíquica, que ficava um pouco afastado da cidade, um lugar agradável e cercado por uma paisagem natural bem convidativa. Vincent não ficara muito satisfeito com a decisão dos pais a princípio, mas com o tempo, por sentir uma segurança reforçada na clínica, achou de muito bom grado sua estadia por lá, conseguindo finalmente relaxar um pouco mais suas neuroses.

Durante dois meses, tudo correra muito bem. Afastado da influência negativa da cidade e das drogas ilícitas, com auxílio da medicação prescrita pelo Dr. Leary e das próprias sessões terapêuticas diárias com o mesmo, Vincent aparentava uma melhora visível, já tendo consciência de que sofria de um distúrbio conhecido como ‘paranóia’, que desencadeava por vezes delírios de grandeza ou, como no caso dele, de perseguição – e que, portanto, não havia nenhum assassino de verdade perseguindo-o, era tudo fruto de sua imaginação. Por isso, já não tinha medo de caminhar sozinho por entre as trilhas ao redor do instituto, nem de ficar desprotegido em lugares abertos e o Dr. Leary já dava como certa sua alta em poucos dias.

Mas esta certeza fora por água abaixo numa noite fria e chuvosa, véspera da saída de Vincent da clínica. Dr. Leary fora acordado às pressas pelas enfermeiras, que lhe informaram que o paciente 013 (Vincent, claro) arrombara a porta de sua alcova e desembestara numa fuga alucinada pelos corredores, e só fora contido por seis enfermeiros agindo em conjunto, que lhe aplicaram um sedativo e o puseram numa camisa-de-força, deixando-o em seguida na enfermaria, desacordado. Mais tarde, ao interrogar o rapaz, Dr. Leary descobrira o motivo do novo surto: Vincent tinha certeza de que, da janela de sua cela, avistara o ser mais pavoroso que já vira em toda sua vida: um Predador. Ele disse que ficara intrigado com alguma coisa ao lado de uma árvore, num lugar onde parecia não haver nada, mas que tinha “um certo movimento estranho”; de repente, o “lugar estranho” se transformou na horripilante criatura, por poucos instantes, mas o suficiente para Vincent compreender que o que ele vira era na verdade um Predador, o alienígena dos filmes, e que estava se utilizando de sua tecnologia de invisibilidade para surpreender Vincent em seu catre, quando este estivesse dormindo – mas o Predador provavelmente não contava que seu aparato da invisibilidade pudesse falhar justamente no instante em que Vincent, intrigado, observava-o. Achando que a sorte lhe dera uma oportunidade de se salvar, ele não pensara duas vezes e encetara a mal-sucedida fuga.

Dr. Leary ficara extremamente desapontado com aquela recaída às vésperas da cura total e também não pudera acreditar que, apesar de tudo que haviam conversado anteriormente, Vincent recusava-se a admitir que aquela visão não passara de uma nova modalidade de paranóia, dessa vez com uma acentuada dose de esquizofrenia – o que muito preocupava o pobre doutor. Mas ele nada pudera fazer para impedir que aqueles episódios voltassem a ocorrer, até mesmo com uma freqüência regular, apesar do aumento da medicação e da vigilância em torno de Vincent, o que nos traz ao fato que iniciou a história, quando ele conseguiu escapar da clínica e se embrenhou na mata, à guisa de se esconder da criatura.

Depois desse episódio, o Dr. Leary decidiu utilizar sua carta na manga mais poderosa, e talvez a última: a regressão. Através da terapia das vidas passadas – que aprendera com um excêntrico e misterioso psiquiatra hindu –, ele pretendia investigar as origens secretas daquele trauma e, com ajuda deste conhecimento, expurgar definitivamente da mente de Vincent aquelas paranóias deletérias. E, por incrível que pareça, deu certo: em pouco tempo, embora Vincent estivesse antes num estado quase perdido, ele começou a se recuperar de uma maneira inacreditável, recobrando a lucidez e o controle dos pensamentos, pouco a pouco, novamente a par da mesma certeza que havia conquistado no início de seu tratamento e perdido após o “aparecimento” dos Predadores, que era a de saber que tudo aquilo era uma construção ilusória provocada por sua mente e que as criaturas, óbvio, não poderiam ser reais, eram fictícias personagens de Cinema. Ele até mesmo se espantava com o fato de ter ficado por tanto tempo à mercê desses absurdos, o que fazia Dr. Leary se perguntar por que não usara aquele método desde o princípio, chegando a pôr a saúde mental do paciente em risco por conta de uma avaliação errônea de procedimento.

Seu Josh e D. Lucy não cabiam em si de felicidade ao receberem Vincent em casa novamente após quase dez meses de tratamento. Como era o filho único do casal, eles passaram todo esse tempo vivendo um inferno particular, com medo de perderem o filho para sempre. Portanto, festejaram bastante seu retorno e o fizeram prometer que não entraria mais para o mundo das drogas nem faria mais nada que pudesse pôr em risco sua sanidade mental. Vincent fez como os pais pediram e disse que dali pra frente daria um novo rumo a sua vida, que acessos como aquele só se tornaram possíveis porque as drogas perturbaram sua mente a tal ponto que ele não pudera mais distinguir o real do imaginário e que, com a ajuda do Dr. Leary, ele se fortalecera de modo a não mais se deixar levar por paranóias infundadas.

E as coisas sucederam conforme Vincent prometera aos pais durante alguns meses, até o fatídico dia em que um homem encapuzado surpreendera-o quando voltava da faculdade numa rua escura e, após pronunciar uma única palavra (“Finalmente!”), apunhalara-lhe na direção do coração, um golpe certeiro, enquanto Vincent caía, já agonizando e com a vista escurecendo, perguntando-se se aquilo era real ou apenas uma paranóia um pouco mais elaborada.

O assassino ficara ao lado de Vincent até que este já não esboçasse mais nenhuma reação, e já ia se retirar, quando de súbito materializou-se um Predador a sua frente, que o cortou em dois com uma pequena serra circular que trazia em seu antebraço, antes de se retirar para as trevas de onde surgira.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Uma máscara que cai

Há uma crônica do Luis Fernando Veríssimo, esse grande escritor e cronista brasileiro, cujo título é Racismo, onde ele, de maneira primorosa, faz um retrato fiel e bem-humorado (do tipo “rir pra não chorar”) da situação do negro no Brasil, através de um diálogo entre um homem branco e outro negro. Conversa vai, conversa vem, e o homem branco da crônica faz a declaração chave sobre o racismo brasileiro:

– E digo mais. É por isso que não existe racismo no Brasil. Porque aqui o negro conhece o lugar dele.

Não se choque com a afirmação. Não é verdade? No nosso país, onde o discurso demagógico e hipócrita da sociedade proclama aos quatro cantos que “aqui não há racismo”, a realidade é que só não há um conflito maior entre brancos e negros justamente porque a doutrina oficial de congraçamento racial – arbitrariamente forjada pela experiência de quatro séculos de escravidão – desdenha de qualquer inconformidade por parte das vítimas e não permite que as desigualdades gritantes e a discriminação velada sejam discutidas de maneira adequada e proporcional ao problema. Como explica Milton Santos, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, “Aqui, o fato de que o trabalho do negro tenha sido, desde os inícios da história econômica, essencial à manutenção do bem-estar das classes dominantes, deu-lhe um papel central na gestação e perpetuação de uma ética conservadora e desigualitária”. Ou seja: como é o negro que desde sempre sustenta os hábitos nada solidários da elite brasileira através de sua exploração secular, vamos fingir que nada está acontecendo; assim, nada precisará mudar. Oba!

Brincadeira à parte, basta lembrarmos de toda polêmica que se criou em torno das cotas para negros nas universidades públicas e teremos uma pequena amostra do tipo de preconceito racial que há no Brasil. Muito se falou, muito se debateu, algumas universidades adotaram o sistema de cotas, outras não, algumas autoridades criticaram, outras aplaudiram, mas o fato é que, de uma perspectiva mais ampla, nada vai mudar de verdade. Porque o problema não é o modo de seleção das universidades; não é o vestibular que é exclusivo: é todo o sistema! Enquanto não for oferecida uma educação de base de qualidade à população mais pobre (constituída por 70% de negros) para que eles possam competir de igual pra igual com seus concorrentes ricos (em sua maioria, brancos), de nada adiantará, isoladamente, distribuir vagas das faculdades públicas aos negros como se fosse uma esmola que se dá a um indigente na rua. Esse tipo de determinação apenas torna mais visíveis as frágeis relações sociais que regem o funcionamento da sociedade brasileira, opondo de maneira mais aberta os interesses raciais diversos e despertando o adormecido monstro do racismo.

Além disso, há mais, muito mais... Para não me perder em incontáveis exemplos sórdidos de discriminação ou em tortuosas e eternas estatísticas evidenciadoras, fico somente com a seguinte, que cabe para ambas as situações: ano passado, o Índice de Desenvolvimento Humano, ou IDH, medido pela ONU, revelou de forma embasada numericamente a discrepante distância que há entre o “Brasil Branco” e o “Brasil Negro”. Embora tenham sido constatadas melhoras em ambos os “Brasis”, eles afastaram-se ainda mais na classificação mundial. O “‘Brasil Branco’, em 1991, ocupava a 65ª ou 66ª posição entre as nações mais desenvolvidas no aspecto social; em 2000, chegou à 44ª posição. Já o ‘Brasil negro’, que em 1991 estava na 101ª ou 102ª posição, caiu em 2000 para a 104ª ou 105ª. A diferença entre os dois "países" passou de 36 para 60 posições no ranking do IDH em apenas 10 anos”. Quer dizer: só um cego (leia-se aqui: ignorante) pra não ver que o nosso queridíssimo país é, sim, uma nação rigorosamente racista e hipócrita, que consente a opressão e a segregação racial pois é conveniente a sua parcela branca e detentora do poder a postergação da exploração da população negra para o continuísmo dos privilégios dessa mesma classe exploradora e para a manutenção desse mesmo poder mesquinho.

Enfim. Eis aqui as tristes reflexões e constatações vergonhosas que faço de maneira tão simplória um dia após o Brasil “comemorar” 120 anos de abolição da escravatura.

*para maiores informações:
Ser negro no Brasil hoje;
Desigualdades;
120 anos da Lei Áurea.

domingo, 11 de maio de 2008

Isoldete

Depois de quatro anos, sete meses e doze dias de enrolação, desconversas e adiamentos, ao invés de finalmente pedir a Isoldete em casamento, o que o Zé Carlos fez foi, como um bom canalha, pôr fim ao namoro de tão longa data – fato que, diga-se de passagem, não deixou a Isoldete lá muito satisfeita. Ela, que andava animada desde que o Zé Carlos havia conseguido a promoção tão esperada no emprego – e que, nos últimos tempos, era a desculpa utilizada para não assumir um compromisso mais formal – mal pôde se controlar a tempo antes de arremessar no canalha toda a louça que via pela frente – e, mesmo assim, ainda causou um prejuízo considerável.

Também a família da namorada abandonada mal acreditava no atrevimento do Zé Carlos. Ao saber do ocorrido, o pai, que cansou de jogar porrinha e beber aquela pinga com o genro durante os jogos do campeonato carioca, ameaçou ele próprio matar aquele cafajeste, e teria mesmo cumprido sua determinação, não fosse uma artrose que mal permitia que levantasse de sua poltrona; a mãe, coitada, que já via como que encaminhada a filha mais velha, já com seus vinte e sete anos, na idade de casar, desmaiou e precisou ser levada às pressas ao Socorrão – e, depois que acordou, ficava com as mãos levantadas pro céu, clamando “Me leva, meu Pai, me leva!”.

Em meio a toda essa algazarra, a única mais lúcida era a Lucineide, irmã mais nova da Isoldete. Ela, que esteve ao lado da irmã durante toda a fase crítica de sofrimento e indignação, que a impediu de fazer qualquer besteira mais irreparável e que, apesar de ser a mais nova, era quem mais dava bons conselhos à irmã mais velha, foi quem surgiu com a proposta que, passada a raiva, mais agradou à desolada Isoldete, e que lhe trouxe também uma certa esperança.

– Vamos pedir ajuda à Mãe Titina.

Mãe Titina era uma mãe-de-santo conhecida da família que tinha um terreiro de umbanda lá pras bandas da Vila Maranhão, nos arredores do Porto do Itaqui. Tinha ficado amiga da mãe delas numa época em que ainda eram garotas, e sabiam que, de alguma forma desconhecida, tinha ajudado muito a família. A idéia de Lucineide era pedir à Mãe Titina um forte despacho que fizesse com que Zé Carlos voltasse atrás na sua decisão e reatasse o namoro com Isoldete, pedindo-a em casamento logo em seguida. Isoldete, após refletir pouquíssimos segundos, aceitou a idéia da irmã. Mas acharam melhor não dizer nada a ninguém, preferindo agir na surdina, sem despertar suspeitas.

Alguns dias após tomarem a decisão de visitar Mãe Titina, ao anoitecer, foram juntas ao encontro da mãe-de-santo. Já na Vila Maranhão, não tiveram muito problema em encontrar o terreiro, visto que fizeram uma meticulosa pesquisa nos dias que antecederam a empreitada. Como também já tinham marcado uma “consulta” com a própria, não demorou muito que estivessem em sua presença.

Mãe Titina tratou-as como uma tia trataria as sobrinhas. Sempre muito solícita, ouviu atenciosamente tudo o que Isoldete tinha a contar, e até mesmo passou a mão nos cabelos desta quando, a intervalos regulares, caía no choro, ainda abalada. E dizia: “Calma, minha filha, calma”, num tom que expressava algo do tipo “tudo vai ser resolvido”. E foi justamente isso o que ela afirmou ao final da entrevista, após dizer às duas o que precisavam fazer.

Feliz, antevendo a eficácia das palavras e das ordens de Mãe Titina, Isoldete passou uma semana atarefada, indo atrás de todos os ingredientes do despacho receitado. Tudo isso, claro, era feito às escondidas, apesar das constantes indagações de sua mãe, sempre muito viva, notando a insuspeita alegria do olhar de Isoldete, que se saía com frases do tipo “Não é nada, mãe, não posso mais sorrir?”, o que só deixava sua mãe mais curiosa. Lucineide também ajudou na medida do possível, apesar da advertência de Mãe Titina, que disse que só quem estava pretendendo pedir ajuda aos orixás era quem devia fazer os preparativos do despacho.

Após tudo pronto – galinha preta, cachaça, comida de Exu, alguidares com sangue de sei-lá-quê – , numa madrugada particularmente bela e iluminada por uma lua cheia muito parecida com que a sacerdotisa advertiu-as que daria mais poder ao despacho, elas saíram de casa pé-ante-pé, em busca de uma encruzilhada. Encontraram num lugar não muito afastado a encruzilhada perfeita para o pretendido, isolada e sombria, onde dificilmente chamariam atenções indevidas. Cumpriram os rituais umbandistas relacionados ao desejo de Isoldete e voltaram pra casa, bastante esperançosas de que tudo sairia dentro dos conformes e que, em breve, Isoldete estaria de véu e grinalda trocando alianças com seu “prícipe encantado” Zé Carlos.

Passadas quase duas semanas, as irmãs retornaram ao terreiro de Mãe Titina. Isoldete encontrava-se bastante aturdida, debilitada e, nas palavras de sua mãe, “um caco”. Contaram à Mãe Titina que tinham feito tudo de acordo com os desígnios desta, mas qual não foi a surpresa de ambas ao ficarem sabendo que Zé Carlos, poucos dias depois de realizado o despacho, estava morando com outra mulher. Ainda esperaram um tempo para ver se os efeitos desejados não estavam apenas um pouco atrasados, mas só tinham notícia de que o novo relacionamento dele estava indo de vento em popa, e então resolveram voltar.

Mãe Titina ouviu tudo com uma fleuma admirável. Ficou algum tempo em silêncio, meditando, provavelmente buscando o motivo do fracasso daquele pedido de auxílio divino. Quando o silêncio já se prolongava por um tempo constrangedor, Mãe Titina pediu desculpas a Isoldete e disse que não previra a real dificuldade do pedido. Passou-lhes um novo despacho, maior e mais pormenorizado e garantiu-lhes que em no máximo três meses Zé Carlos estaria na Igreja casando com Isoldete, ou ela não se chamava Mãe Titina. Nem que para isso tivesse que falar com Exu pessoalmente.

Incrivelmente, exatos três meses depois, numa festa que deu o que falar, diante de uma quantidade de convidados invejável, uma esfuziante e sorridente Isoldete dizia “Sim” a um suarento Zé Carlos, perante o padre que realizou o casamento de ambos, que teve Lucineide como madrinha e Mãe Titina como convidada de honra. A mãe delas estava imensamente grata a Mãe Titina pelo que havia feito por sua filha – claro, a esta altura do campeonato, aquela já estava a par de tudo – e fez questão de dar uma ajuda financeira bem maior à amiga que o estipulado pelas filhas, o que Mãe Titina recusou veementemente, alegando que era apenas uma intermediária entre os orixás e os fiéis e que elas deveriam mesmo era agradecer a Exu, não a ela.

(Faltou dizer que, quando dizia “Exu”, Mãe Titina referia-se na verdade a um negão de quase dois metros de comprimento e tórax que rivalizaria com o de gorilas, que era seu secreto guarda-costas pessoal, a quem ela pedia “auxílio” sempre que algum despacho em especial não saía conforme o previsto, como no caso do infausto Zé Carlos – que, depois da "visita de Exu", apareceu chorando à casa de Isoldete, com um buquê de rosas nas mãos, implorando que esta voltasse com ele.)

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Um alerta

Há, no Universo Marvel (universo onde se passam as aventuras em quadrinhos dos personagens da Marvel Comics), no coração do Pólo Norte, um lugar chamado de Terra Selvagem, onde – sabe-se lá como – o gelo preservou e deixou imaculado pelo Homem toda uma extensão de floresta tropical nos moldes jurássicos. Isso mesmo, com homens-das-cavernas, dinossauros e outras feras pré-históricas.

Pois bem. Numa história do Homem-Aranha que eu li há muito tempo atrás, meu querido herói enfrentava uma ameaça incomum. Uma certa empresa, controlada pelos piores canalhas possíveis, estava aumentando artificialmente as temperaturas do Ártico com fins de derreter as geleiras e, dessa maneira, inundar a Terra Selvagem para poder lucrar com a exploração petrolífera que se iniciaria minutos após a inundação. Claro, no fim das contas, o nosso amigo aracnídeo, com o auxílio de tribos nativas e outros heróis, pôs fim aos planos maquiavélicos da corja de empresários vilanescos e tanto o Pólo Norte quanto a Terra Selvagem puderam respirar em paz.

Tudo isto contado acima poderia passar simplesmente por encheção de saco bloguística (que neologismo absurdo, hein?) se não fosse pela incrível capacidade da vida de, muitas das vezes, imitar a arte. Nesse caso, não nos presenteando com uma biodiversidade pré-histórica e inexplicável, mas sim com o derretimento das geleiras árticas como uma maneira de lucrar com a exploração de suas riquezas minerais.

Não, não é invenção minha, por mais inescrupuloso que possa parecer. Coloque no google a expressão “exploração do ártico” e você verá a enxurrada de páginas que irão aparecer denunciando essa perfidez, essa desumanidade hedionda, esse descaso criminoso em relação ao nosso planeta. Um deles, o Rastro de Carbono, adverte que “ao invés de se preocuparem em conter as emissões de gases do efeito estufa em suas nações, os governantes estão mais interessados nos lucros que o aquecimento global pode trazer”, um declaração que faz brotar, pelo menos em mim, uma insatisfação e uma revolta tão profunda e pungente que não pode ser descrita através de palavras.

O teor do que está acontecendo é mais ou menos o seguinte: o recuo das geleiras árticas devido ao aquecimento global está tornando possível que os recursos naturais da região norte-polar, que permaneceram todos estes anos à margem da destruição ambiental provocada pela industrialização do mundo capitalista por conta do clima inóspito, possam finalmente ser explorados pelos gananciosos governos dos países que as circundam – daí a preocupação do site citado acima. Ao invés de se preocuparem com os males indiscutíveis causados pelo efeito estufa e dedicarem seus esforços para conter seu avanço, eles estão muito mais interessados nas enormes possibilidades econômicas que se abrirão caso a região possa vir a ser explorada, ansiosos em fazer dinheiro em detrimento do meio ambiente. E essa ânsia em pôr as mãos no “ouro ártico” desencadeou, ainda por cima, uma acirrada disputa pelo controle das áreas exploráveis, onde cada um reclama para si uma parte maior do bolo: a Noruega deu a largada, iniciando as atividades da primeira instalação de exploração e processamento de gás natural e petróleo construída no Ártico, fora do Alasca; a Rússia, ainda tímida, “apenas” aprofundou o acirramento das discussões numa simbólica declaração de soberania, ao fincar uma bandeira sua no Pólo Norte; os Estados Unidos, logo atrás, já cogitam a construção de uma base operacional na região, para controlar a já expressiva frota naval que atravessa o oceano ártico em virtude do esvaecimento das geleiras oceânicas.

Esquecem-se estas inconseqüentes e obtusas nações que o Ártico pertence, primeira e unicamente, às espécies que lá vivem e à biodiversidade da região, e não a interesseiros e abjetos invasores vizinhos; que de nada vale a busca desenfreada por riquezas se isso for feito às custas da saúde da Terra, pois sem ela não temos e não somos nada; e que brincar levianamente com a Natureza nunca deixou de ser punido de maneira arrasadora e catastrófica. Pelo bem do nosso planeta – e, conseqüentemente, também nosso – , é preciso que façamos alguma coisa contra este tipo de atitude egoísta o quanto antes, já que não temos homens-aranhas ou quaisquer outros super-heróis para lutar contra estes esquivos inimigos e salvar o mundo de suas mesquinhas intenções em nosso lugar, ainda em tempo de evitar que este precedente injustificável e ignominioso possa servir de exemplo para outros estúpidos ataques ao meio-ambiente em prol de simples lucro, e que vêm tornando a degradação ambiental algo cada vez mais irreversível.

As futuras gerações, sem dúvida, agradeceriam.

*para maiores informações:
A exploração do Ártico;
O Ártico em perigo;
Ouro sob o gelo.

domingo, 4 de maio de 2008

Uma certa Ílion

Assistindo à Tróia, filme épico de 2004 que, óbvio, almeja ser a versão cinematográfica da famosa obra literária homônima (mas que deriva de outro nome para Tróia e, por isso, chama-se Ilíada), não tem como a gente não se emocionar. Mesmo para algumas pessoas que, como eu, são excessivamente puristas e sentem uma agulhada no peito a cada cena acrescentada pelo diretor ou a cada alteração da história para satisfazer os valores hollywoodianos, ainda assim, em vários momentos, sentimo-nos invadir pela deliciosa comoção de “presenciar” os feitos lendários e míticos que marcam a narrativa da guerra de Tróia.

E que narrativa... Composto de 15693 versos distribuídos arbitrária e irregularmente em 24 cantos, o poema gira em torno do herói grego Aquiles, semi-deus filho do humano Peleu e da ninfa Tétis, e de seu trágico destino, amarrado definitivamente ao desfecho da trágica guerra. Envolta numa efervescente gama de sentimentos opostos e recheada por atitudes tanto perversas quanto grandiosas, sua trajetória particular dá mote a outras inúmeras tramas e histórias paralelas, desde a participação do panteão grego no decorrer do conflito – e, diga-se de passagem, também em sua origem, pois foi por causa de uma malfadada disputa de beleza entre Athena, Juno e Afrodite, engendrada pela ardilosa deusa da discórdia, Éris, que o rapto de Helena (motivo da guerra) se tornou possível – , às agruras de outros heróis, de ambas as partes, presentes na disputa, como Ajax, Ulisses – que é o personagem principal de outro épico, ligado à Ilíada, A Odisséia – Páris, Heitor, entre outros.

Até hoje, há uma acirrada polêmica sobre quem seria(m) o(s) autor(es) deste poema épico, tido como a obra inaugural da literatura ocidental. Acredita-se que tenha sido composto por “um velho cantor, pobre e cego que, peregrinando de terra em terra, recompensava a quem o agasalhava com a declamação de seus poemas”, de nome Homero, e que teria vivido no séc. VIII a.C. Mas ele tanto poderia ter sido tão somente o compilador das diversas rapsódias quanto poderia nem mesmo ter existido. Também há a possibilidade de que ele tenha sido o autor de um poema inicial, ao qual, com o passar dos anos, foram sendo acrescentados novos versos, novos cantos, por desconhecidos poetas. (Enfim, o assunto é realmente polêmico e não me atreverei a ir além de uma exposição superficial de suas questões principais.)

Mas esta dúvida irrelevante não interfere de maneira alguma no caráter totalmente excepcional da obra, que atravessou séculos e séculos e chega hoje até nós com o mesmo impacto emocional que encantou e influenciou gerações de poetas, escritores e outros artistas ou simples e embevecidos leitores. Além, é claro, de sua importância didática e instrutiva, pois ambas as obras, A Ilíada e A Odisséia, são as principais fontes do período da história grega denominado, não por coincidência, de Período Homérico, revelando interessantes aspectos sociais, culturais e religiosos da época em que foram escritas, além de conterem uma vasta quantidade de dados e pormenores geográficos e indicações bastante verossímeis dos modelos de conduta e valores da sociedade homérica, inclusive encarnando em várias personagens o ideal heróico grego, tais como: o valor do altruísmo; o sacrifício pessoal em nome da honra; o patriotismo; a amizade sincera, etc. Platão considerava Homero o “educador da Grécia, no mais pleno sentido” e, em sua República, criticou de maneira ostensiva a exposição das fraquezas humanas (egoísmo, ódio desmedido, paixões, inveja, orgulho) como algo natural, não apenas personificadas nos heróis, mas principalmente porque até mesmo os deuses se rendiam a essas fraquezas. E se até mesmo os deuses não podiam fugir a elas, como poderíamos nós, tolos e ridículos mortais?

Discussões históricas e filosóficas à parte, é o seu valor literário e a beleza das situações enfrentadas por Aquiles e cia. o que mais me interessam e impressionam. Não vou contar aqui todos os trechos que me deixam boquiaberto, pois aí esta crônica vulgar, já desnecessariamente extensa, ultrapassaria a quantidade de laudas suportadas até mesmo pelo leitor mais dedicado. Mas não posso deixar de registrar minha sincera indignação com o atroz destino de Heitor, príncipe troiano, valoroso guerreiro, marido e pai dedicado, filho exemplar e cumpridor de todas as tarefas e obrigações perante sua pátria. Não consigo descrever com outra palavra que não seja ‘sacanagem’ o que foi feito dele: teve que enfrentar cara a cara a fúria de Aquiles – pois Heitor matara sem querer o melhor e mais amado amigo de Aquiles, Pátroclo, pensando que fosse o próprio Aquiles, levando este a dirigir toda sua vingança ao azarado assassino de seu fiel companheiro – , em conseqüência de uma guerra que só havia começado porque seu irmãozinho Páris seqüestrara a mulher de outro homem. Claro, esta luta é um dos clímaxes tanto do poema quanto do filme e ambos não seriam o mesmo sem ela, mas que foi uma baita sacanagem, ah, foi.

Outra parte muito boa e que envolve novamente as duas personagens é quando Aquiles, arrependido, chora debruçado sobre o cadáver de Heitor, desculpando-se com ele por tê-lo desrespeitado e o tratado como a um animal, arrastando-o amarrado a sua carruagem. E diz: “Desculpe-me, irmão. Em breve, nós estaremos juntos.”, numa alusão ao fato de que pressentia a morte já próxima, talvez como castigo.

Belíssimo.

quarta-feira, 30 de abril de 2008

Uma história irreal

O indivíduo era pobre, daqueles que o substantivo implorava de pés juntos pelo complemento ‘lascado’. Quase um mendigo. Não que ele não fosse trabalhador, muito pelo contrário. Mas seus Senhores, que o observavam naquele exato momento de uma bancada superior, exploravam-no em demasia já há algum tempo, e sem nenhum escrúpulo. Claro, os dotes físicos do indivíduo eram bastante evidentes e atrativos, sem contar algumas habilidades manuais latentes, o pendor para o bom-humor, a memória fraca e o intelecto adormecido - esta última uma qualidade imprescindível - , o que fazia d'O indivíduo um escravo perfeito. (Embora ninguém nunca se referisse a ele daquela maneira, com um termo tão “direto e forte”, como diziam, quanto aquele.)

Estava sendo julgado. Sem dinheiro para quitar as dívidas, como sempre. Parece que, quanto mais trabalhava, menos dinheiro tinha, era incrível. O salário que recebia mal dava para a subsistência da família, imensa, e ainda tinha aquela quantidade de impostos! O indivíduo nem sabia o que eram esses impostos, nem o porquê deles, mas os Senhores pegavam a grana de qualquer forma. E, naquela corda bamba de salário e dívida, sempre chegava uma hora em que O indivíduo ou tinha que alimentar sua família ou pagava as eternas dívidas. E, quando punha a família em primeiro lugar, invariavelmente vinha o julgamento.

Tentava se defender. Geralmente, os mesmos argumentos de sempre: “Vocês podiam aumentar meu salário”; “E daquela vez que eu achei um tesouro em minhas terras e vocês o roubaram?”; “Vocês não têm alma?”. E as respostas também se repetiam: “Não”, “Não lembramos”, “Não”. A ladainha dos Senhores se esmerava a cada julgamento, numa tautologia sobrenatural: era o velho e batido sermão sobre “nós lhe demos tudo que você tem”, “como você faria pra se virar sem a gente?” e “nós sempre lhe damos presentes de Natal”, com algumas poucas variações, mas com a elegância de costume. O indivíduo não tinha outra saída a não ser baixar a cabeça e concordar com tudo, resignadamente. Era isso ou enfrentar os cachorros.

Mas daquela vez, era diferente. A dívida, que já vinha se acumulando há algum tempo, chegou a níveis exorbitantes. E o indivíduo ainda teve a audácia de pedir para não pagar. Queria dar o calote! Sem dúvida, um ultraje. Era um ultraje tão ultrajante que os Senhores ficaram assustados. Os outros indivíduos poderiam seguir aquele desastrado exemplo. Onde aquela ousadia iria parar? E se ninguém mais quisesse pagar suas dívidas e se rebelassem? Era melhor tentar uma nova abordagem. Quem sabe seduzir O indivíduo com falsas promessas de crescimento? Melhorar-lhe um pouco as condições, para que ele pensasse que conquistara, no mínimo, um certo respeito por parte dos Senhores, e também para que pudesse se impor em relação aos outros indivíduos, exibindo seus “privilégios” e mostrando como era “especial”. Assim, O indivíduo talvez nunca nem reparasse na sua escravidão implícita e nunca mais atrasaria os pagamentos.

Chamaram-no para um canto e lhe disseram que não iam perdoar a dívida, que ele teria que pagar de qualquer jeito, mas lhe dariam uma ajuda. Era só ele fazer exatamente o que os Senhores mandassem, sem nunca questionar.

E assim foi feito.

*** *** *** ***

Muito tempo depois, O indivíduo volta. Vinte e um anos depois, mais precisamente. Estava sorridente e elegante. Não tanto quanto seus Senhores, claro, mas bem vestido. Também mais forte e mais corado, esbanjando até uma confiança exagerada - que os Senhores sabiam, descabida. Exalava um ar de pureza perdida, de corrupção interna. Certamente não era o mesmo de vinte e um anos atrás.

Depois da última visita, há mais de duas décadas, O indivíduo nunca mais esteve diante deles. Saiu-se muito bem com o auxílio dos Senhores. E, por isso mesmo, estes não entendiam o motivo daquela inesperada visita. O indivíduo não estava satisfeito?

- Estou, estou sim; satisfeitíssimo. Nunca minha vida foi melhor. Nossa casa agora, embora a mesma de sempre, foi reformada e pintada. Bom, pelo menos a fachada e alguns quartos. Os Senhores sabem, tive muitos, muitos filhos, muito mais do que os Senhores, somados todos, e nem sempre é possível agradar a todos. A maioria. Mas não me queixo. Escolhi alguns filhos, uns poucos privilegiados, e dei tudo do bom e do melhor pra eles, quase tanto quanto os Senhores deram para os seus próprios filhos. E assim sigo contente.

- Então, qual a razão da visita?

- É que alguns dos meus filhos, muito mal-educados, os Senhores me desculpem, ficam falando um monte de bobagens. Andam dizendo que eu sou explorado, desde sempre, que vocês me usam para seus próprios fins sem me dar o que eu mereço de verdade, que vocês me mantém à rédea curta. Chegaram até a dizer, os Senhores me desculpem mais uma vez, que eu não passo de um escravo.

- Blasfêmia! – Irritaram-se os Senhores. – Como ousam?? Nós não já demos provas mais do que suficientes de que isso não é verdade? Em todos esse anos, quantas melhoras não lhe proporcionamos? Além disso, não já publicamos vários documentos demonstrando essa melhora? Ano passado, mostramos a todos que na sua casa já se come e vive melhor, mesmo que seja para poucos. E, recentemente, os pusemos na nossa listinha de privilegiados absolutos! O que mais vocês querem?

-Eu sei de tudo isso, Senhores. E até contei pros meus filhos. A maioria deles acredita em mim e nos Senhores, a grande maioria. Mas esses mal-agradecidos que reclamam, uns poucos, justamente aqueles a quem eu resolvi dar um pouquinho mais que à enorme maioria, apesar de não tanto quanto aos meus preferidos. São eles, Senhores, o motivo da minha vinda. Não sei o que eu devo fazer para satisfazê-los. Ou calá-los.

Os Senhores sorriram, aliviados. Ah, era isso? Era muito fácil.

- Dê um pirulito a eles. Ou desconverse.

- Isso eu já fiz, Senhores. Mas eles continuaram.

- Então - os Senhores ficaram com um ar sombrio - está na hora de soltar os cachorros.

domingo, 27 de abril de 2008

Estranho espelho

Os cronistas de jornal ou de revista são uns chatos. Mesmo aqueles que se direcionam a assuntos mais específicos, seja por um certo conhecimento acadêmico ou mera experiência. Eles não passam de pedantes intrometidos que ficam nos enchendo periodicamente com sermões e balelas, dando pitacos e opiniões sobre os mais variados assuntos, desde as inconstâncias das bolsas de valores ao redor do globo, até os acontecimentos nas partidas de futebol pelo mundo afora, passando por temas políticos, sexuais, filosóficos, artísticos, e por aí vai.

Já os cronistas de blog, ah, esses são os piores. Pelo menos, os cronistas de jornais ou revistas ainda são, óbvio, requeridos pelos jornais e revistas da qual fazem parte e, na maioria das vezes, também pelos leitores das mesmas. São colaboradores profissionais e muitos até recebem salário pelo exercício de tal profissão. Os cronistas de blog, não: simplesmente apropriam-se de algum sítio gratuito oferecido na internet e que é próprio para isso, os blogs, e então passam a propagar seus “conhecimentos” e pontos de vista acerca de uma gama de assuntos ainda mais variada que a dos cronistas profissionais, semanalmente, para qualquer desavisado ou desocupado (ou ambos) que esteja navegando à toa pela blogosfera. Quando não, além de crônicas regulares, também publicam (ou postam, termo que designa as publicações do tipo) textos líricos, sejam estes poesias de qualidade discutível ou histórias de variados tipos e estilos.

Como já extensamente citado acima, a maravilha que permite que estes escritores obcecados e impertinentes possam passar sua sabedoria a todos são os blogs. O blog é esta fantástica ferramenta de comunicação, a mais nova coqueluche da vasta-teia-do-mundo. Surgiu em meados de 1997, através do blogueiro original, Jorn Barger, que criou o primeiro dos blogs, o robotwisdom, e que também cunhou o termo weblog (em inglês, web: rede, a internet como um todo; log: diário). Depois, um tal de Peter Merholz, também um dos primitivos blogueiros, definiu o termo como o conhecemos hoje, colocando em sua página particular o anagrama em forma de trocadilho “we blog” (algo como “nós blogamos”), que passou a ser utilizado em larga escala por todos os blogueiros da época e autenticou a criação do verbo inglês “to blog”.

Num boom que nenhum desses futurólogos e vaticinadores tecnológicos de plantão pôde prever, os blogs tomaram conta do mundo. Eles, que no princípio não passavam de simples diários pessoais expostos aos amigos ou a outros blogueiros, cuja influência e importância para muitos especialistas não passava de simples euforia adolescente e passageira, multiplicaram-se aos borbotões e, hoje, dobram de quantidade a cada seis meses. Como tudo que se multiplica de maneira assustadora, eles também mutaram e evoluíram, tanto em forma quanto em conteúdo e, apesar da maioria ainda se atrelar ao significado original, muitos alteraram sua motivação e se tornaram os chatos cronistas da nova geração, com sua propensão para tons líricos, jornalísticos, filosóficos, poéticos, etc.

Claro, esses “especialistas” não levaram em consideração a massa de indivíduos desprovidos de meios de expressar sua opinião que se sentiam marginalizados da sua necessidade de emitir juízos de valor a respeito da realidade que nos cerca; não conceberam a enormidade de escritores, poetas e jornalistas potenciais espalhados pelos quatro cantos, frustrados pela impossibilidade imposta de exercerem a profissão de seus sonhos, que encontraram nos blogs o mecanismo ideal para tal realização, possibilitando a expansão geométrica de seus desvarios literários ou relatos jornalísticos e o surgimento desse “novo gênero” de escritores, os cronistas de blog.

Fazer o quê. Se fomos imperscrutavelmente tragados pela magia da Literatura e misteriosamente levados ao feérico mundo da arte da escrita, e agora encontramos um meio legal e legítimo de desfrutarmos dos inebriantes prodígios da realização de um sonho - ainda que de forma restrita e, muitas vezes, isolada -, não caberia a nenhum filósofo ou especialista ou crítico ou qualquer cronista de jornal/revista julgar-nos. Somos todos provavelmente filhos do mesmo Deus e temos o mesmo direito comum de opinarmos e extravasarmos nossos oprimidos e encapsulados sentimentos, frutos de uma existência incompreensível e extraordinária, entremeada de alegrias, manipulações, dores, temores e sonhos.

Fomos enfeitiçados. E o feitiço, embora incerto, é delicioso. Desculpem-nos os desgostosos, mas prosseguiremos.

sábado, 26 de abril de 2008

Brasil brasileiro e Estados Unidos estadunidenses

Enquanto nos Estados Unidos – nação que em sua última eleição deixou escapar rastros de uma fraudulenta contagem de votos – a democracia deu a volta por cima e agora dá show, com dois candidatos democratas, uma mulher (nossa!) e um negro (meu Deus!), numa corrida partidária sem precedentes pela vaga (ainda) de candidato oficial à presidência, o Brasil, infelizmente, envereda pelo caminho contrário, dando oportunidades diversas à proliferação da corrupção, à canalhice e à conquista desenfreada de poder em detrimento dos princípios. Não bastasse a oposição geográfica e econômica, acrescenta-se mais essa dicotomia entre os dois países.

Bom, não que eles situem-se nos extremos exatos e opostos de fortalecimento da democracia. Nem o Brasil deixou-se corromper totalmente pela “malandragem” e pelo deixapralaismo, nem “a América” abandonou os seus hábitos sabidamente culturais de mentiras em prol do imperialismo e imperialismo em prol de mentiras. Mas, para fins de comparação, a situação brasileira deixa muito a desejar.

Pobre Brasil... No dia em que sua mais recente constituição foi promulgada, a americana havia recém completado duzentos e um anos. Duzentos e um! Assim, fica difícil mesmo competir. A constituição dos Estados Unidos foi aprovada definitivamente em 17 de setembro de 1787, com a bênção de Thomas Jefferson e os demais “Pais” da República americana. De lá pra cá, a estrutura política estadunidense permaneceu inalterada, mudando apenas as visões das sociedades das suas respectivas épocas e o melhor modo quanto à aplicação da democracia. Além disso, nossos irmãos continentais foram peça fundamental em duas guerras mundiais, assassinos em massa de vietnamitas e pólo vencedor da Guerra Fria, o que deixou caminho favorável para o derradeiro alastramento do capitalismo (sua principal fachada), tornando-se, enfim, a potência dominante.

A trajetória brasileira foi, contrariamente à americana, bastante atribulada - aliás, como as demais trajetórias políticas dos países da América latina. A nossa “independência” nos tirou das garras de Portugal e nos jogou nos braços dos famigerados ingleses – que, afinal, já eram nossos donos mesmo, visto que mandavam nos portugueses. Após o enfraquecimento da Inglaterra com as duas guerras mundiais, nossos patrões-mor tornaram-se os Estados Unidos, que nos trouxeram um breve período democrático como sucessão à República Velha e à Era Vargas, mas que rapidamente patrocinaram a chegada da ditadura militar no país, com medo da “ameaça comunista”. Depois, quando a ditadura não mais era necessária, já que o socialismo russo mostrava inequívocos sinais de decadência, permitiu-se que a democracia retornasse ao nosso território. Timidamente, mas já era um começo.

Os dois países iniciaram a década passada com otimismo e uma boa dose de pensamento positivo. Para os americanos, era a época de desfrutar pela primeira vez um mundo em que não havia nenhuma outra nação a temerem, em que eles podiam ser chamados definitivamente de líderes mundiais. A imagem que ficaria deles desse período era a do democrata Bill Clinton como bom mocinho, símbolo de um país altruísta e defensor da liberdade. Já para os brasileiros, era a oportunidade de poder se reconciliar com a democracia, esta nossa amiga de longa data, afastada de maneira tão terrível e traumática da nossa gente, e por tanto tempo. Nem o fato de que, na primeira eleição em décadas o povo brasileiro elegeu um patife como presidente – que logo sofreu um merecido impeachment – pôde de alguma maneira manchar as conquistas tão almejadas pela nação e, dependendo da pessoa, poderia mesmo se tornar uma nota de rodapé. Desse tempo, a imagem mais marcante é provavelmente a da implementação do Plano Real pelo presidente Fernando Henrique, que trouxe uma nova perspectiva para a economia brasileira, assombrada por uma época não tão longínqua de moratória, congelamento de preços e inflação.

E chegamos, enfim, ao século 21, que trouxe certas desilusões à tona – e algumas seqüelas. A máscara de filantropia e bom mocismo dos EUA caiu, assim como sua respectiva popularidade no mundo, com a subida de George W. Bush ao mais alto posto americano, revelando um país mesquinho e autoritário, sedento de poder e partidário ativo de um imperialismo desmedido. Uma nova guerra no Iraque, à base de argumentos, no mínimo, discutíveis, foi o de menos. O que chocou mesmo foi a notícia de que o Sr. Bush, arauto do Apocalipse, recusou-se a assinar o protocolo de Kioto, o que equivaleu a admitir que os americanos se lixam (sem trocadilhos) para os problemas ambientais, principal preocupação da atualidade. Pelo menos, com o auspicioso fim da era Bush, o povo americano parece estar arrependido das recentes atuações de seu país e demonstra uma atitude de mudança, participando ativamente do processo eleitoral deste ano e, ao menos para boa parte da população, depositando suas esperanças em candidatos com imagens e promessas bem mais próximas das da era Clinton.

E quanto ao Brasil? Bom, para o Brasil, o novo século também não foi muito bondoso. Começamo-lo com um novo sentimento de esperança, algo poucas vezes experimentado pelo nosso povo: Lula no poder! Luís Inácio Lula da Silva, ex-torneiro-mecânico e famoso líder sindical grevista, o eterno candidato do PT, partido que historicamente lutou pelas causas do povo e dos trabalhadores e sempre foi uma ilha de ética no mar de lama de Brasília, havia finalmente se sagrado vencedor das eleições presidenciais de 2002 e iniciaria quatro anos de mandato. Mas a esperança rapidamente deu origem a uma decepção generalizada entre todos aqueles que sonham com algo mais que um Bolsa-Família, pois Lula, o governo e o PT sucumbiram ao festival de corrupção que assola o corpo político brasileiro e se renderam aos encantos da demagogia, do populismo e da politicagem, caindo como cães famintos nos cofres públicos, fossem com mensalões – como antes –, fossem com cartões corporativos – como agora. Fosse com alianças indignas com os principais corruptos do país (leia-se aqui: Sarney e seus equivalentes regionais), fosse com a distribuição arbitrária e interesseira de cargos de todos os escalões do governo com o propósito de obter maioria no Congresso, o fato é que o governo Lula corrompeu-se por completo, deixando uma sensação palpável, indubitável e desagradável de que o Brasil não tem jeito, que jamais conseguiremos fugir à corrupção e que seremos para sempre uma nação de miseráveis e ignorantes, sonhadores e malandros, eternamente presos àquele velho clichê do que poderia ter sido, e que não foi.

É bem povável que estes destinos tão opostos tenham origem nas motivações por trás dos movimentos imigratórios europeus à época do descobrimento do Novo Mundo, que lançaram a sua porção setentrional uma leva de imigrantes com a firme vontade de recomeçar suas vidas e constituir um novo lar, puritanos eficientes e resolutos, fugidos da perseguição implacável da Igreja Católica contra os protestantes; enquanto que para o Centro e o Sul trouxeram uma corja de bandidos, ladrões e canalhas de toda ordem, vagabundos e pusilânimes diversos em busca de novas empreitadas sórdidas ou apenas ambiciosos e cruéis exploradores com ânsia de enriquecer a qualquer custo. Mas isso não serve mais como desculpa para uma inalterável e inexorável trajetória de dependência, subserviência, apatia e total desorganização brasileira, em relação aos Estados Unidos ou quaisquer potências hegemônicas de outrora. Os bons exemplos americanos estão aí para serem seguidos. Basta dessa cultura vulgar e desprezível de malandragem e vocações rítmicas, que são progenitoras do atraso, da miséria e da exaltação do vício e da devassidão. A esperança, (in)felizmente, ainda não morreu e é necessário somente vontade, coragem e trabalho duro (somente?!) para mudar a situação atual e transformar radicalmente o futuro do nosso país, roubado do sonho antigo de grandeza pela realidade que se nos apresenta. E essa cartilha deve ser seguida ao pé da letra, sem medo ou inseguranças, mesmo que o futuro do nosso país esteja indiscutivelmente interligado ao dos estadunidenses e isso signifique talvez uma guerra nuclear ou caos total da natureza, o que vier primeiro.

Mas isso já é uma outra história.

domingo, 20 de abril de 2008

Descuidos (ou Pai e filho)

É noite, por volta de umas oito, nove horas. O pai encontra a casa procurada e estaciona o carro na entrada, sem desligar o motor e dá aquela buzinada clássica. Passados uns poucos minutos, sem perceber nenhum movimento ou barulho em resposta, buzina novamente. Quando já pensa em pegar o celular e ligar para o filho, eis que este finalmente surge, saindo pelo portão da frente da casa com um outro garoto, provavelmente o dono da casa. Ou o filho do dono, como pensa o pai. O filho se despede e entra no carro com ímpeto, jogando de qualquer maneira a mochila que trazia consigo ao banco de trás.

– Pô, pai, não entendi... – reclama o filho, irritado. – Eu já tinha dito pra mamãe que ia passar o fim de semana na casa do Marcão. Por que você fez questão de vir me buscar de qualquer jeito então?

O pai, nada.

– Tava todo mundo aí – continua o filho – o Gatuso, o Bolinho, o Ricardo, o Rodrix, todo mundo. Se eu já tinha avisado, não sei porque você teve que vir me buscar, não sei. Qual foi o problema?

O pai permanece em silêncio.

– Que foi? – Estranha o filho. – Você não vai falar nada, não?

O pai pára o carro no gramado de uma pracinha e o desliga, deixando no ar apenas o som bem baixinho do cd player, quase um sussurro. O filho o observa, já levemente apreensivo, mas nada mais fala. Após alguns instantes, o pai abre o porta-luvas e pega um bolo de papel, como que amassado.

– Precisamos ter uma conversa, meu filho – começa o pai. – Achei isso nas suas coisas – diz, pondo em seguida o bolo de papel na mão de seu filho.

O filho gela. Ou quase isso. Não era um simples bolo de papel amassado. Era um bolo de papel amassado com recheio de maconha. Um paradão. Desconcertado, o filho tenta ganhar tempo.

– Você mexeu nas minhas coisas?

– Não tente desconversar – adverte o pai, sério. – Entrei no seu quarto pra saber onde você tinha posto a Veja dessa semana e encontrei isso ao lado do seu ventilador. E nem adianta dizer que não é seu, porque eu sei que é.

O filho, nada.

– Há quanto tempo você está fumando maconha?

O filho continua em silêncio, sem esboçar reação alguma, aparentemente ainda olhando para o conteúdo em sua mão.

– Vou ter que conversar com sua mãe – prossegue o pai. – Ela tem que saber disso, tem que saber que o filho agora é um drogado, que usa drogas escondido e sabe-se lá o que mais. Não vou mais permitir que você ande com esses seus amigos, esse monte de delinqüentes, esses...

– Pai – interrompe o filho. Após alguns segundos, continua. – Eu também tenho uma coisa pra falar com você.

O pai, interrompido e ligeiramente confuso, observa o filho, enquanto este põe a mão no próprio bolso e de lá puxa seu telefone celular. O filho mexe em alguns botões e, em seguida, passa o telefone para o pai.

– Um dos meus amigos bateu essa foto no fim-de-semana passado e me mostrou ainda há pouco, lá na casa do Marcão. Se quiser ver as outras, é só apertar a setinha pra baixo.

O pai gela. Ou mais que isso. Sua fisionomia não se altera, mas seu coração está bem mais acelerado, não pode acreditar no que vê. Nas fotos, ele aparece ao lado de uma mulher bem mais jovem que ele, dançando e bebendo no bordel em que tinha ido com dois amigos na sexta-feira passada. Numa das fotos, ele beija a moça.

– Quem bateu essas fotos? – Pergunta o pai, em tom contido.

– Isso eu não posso dizer – responde-lhe o filho, algo irônico. – Meu amigo, que passou as fotos pro meu celular depois, pediu pra não ser identificado. E também não adianta dizer que não é você, a mamãe bem que ia reconhecê-lo...

– Meu filho – pasma-se o pai. – você está me chantageando?

– Não, pai, claro que não... – nega sonsamente o filho, de um jeito já bem menos tenso. – Apenas queria lembrá-lo que ambos temos em comum assuntos que preferimos que ninguém, principalmente a mamãe, fique sabendo.

O pai, entendendo o jogo do filho, pensa por alguns segundos. A mulher não precisa mesmo saber que o filho anda fumando unzinho de vez em quando, ele mesmo (o pai) pode dar conta de vigiá-lo e evitar que aquilo saia do controle. Não valia a pena correr o risco de que o filho mostrasse a sua esposa (do pai, claro, não do filho) umas fotos em que ele se engraçava com outra mulher e que nada significavam. O remorso já vinha corroendo todos os seus órgãos desde aquele fatídico dia, não era necessário pôr o casamento numa situação delicada dessas. Quanto ao fato de o filho estar chantageando-o, que mal havia? Pelo menos, aquela esperteza comprovava que o filho ia se dar bem na vida. Talvez como deputado.

– Bem, é verdade, sua mãe não precisa mesmo ficar sabendo de nada – concorda o pai, em tom ameno e cúmplice, tranqüilizando o filho. – Afinal de contas, esses são assuntos de homem, não é mesmo, e uma mulher só ia atrapalhar. Guardemos esses segredos entre pai e filho.

– Exatamente – repete o filho, sorrindo, olhando nos olhos do pai – guardemos esses segredos entre pai e filho.

– Mas tem uma coisa – complementa o pai – você tem que apagar essas fotos.

– Tá bom – aceita o filho. – Mas só se você deixar eu ficar com meu paradão.

– Não deixo nada – diz o pai, sério, encarando o filho. Depois sorri. – Bola logo é um beck aí, uma bomba, que hoje eu quero ficar é doidão.