domingo, 8 de junho de 2008

O destino de Jorge Luis

O barulho dos convidados estava recheado de um constante murmurinho de conversas de todos os tipos, sons de talheres roçando os pratos e as tigelas, tilintar de copos em brindes diversos e ruídos de passos, como é próprio desse tipo de festa, em que familiares e amigos reúnem-se para comemorar alguma data de caráter bastante especial, mas, levados por valores quiçá discutíveis, deixam-se levar pelas aparências e mostram-se em toda espécie de poses, sorrisos amarelos e roupas da moda; em toda sorte de intelectualidades vulgares, através dos mais variados tipos de discussões – “Você vai me desculpar, tio Jonatas, mas a questão principal nessa crise econômica é a falta de investimentos do governo no setor agrícola”; “Não, nada disso, Denise: Nietzsche não era ateu, apenas denunciava os abusos do cristianismo” – ; ou, simplesmente, desfiando posições sociais das mais invejáveis possíveis.

Foi justamente para escapar dessas situações incômodas que Jorge Luis mal se fez presente na casa dos avós e já estava subindo velozmente as escadas em busca de um local mais sossegado, mais recolhido. Encontrou o abrigo que procurava no escritório do avô, que misteriosamente achava-se destrancado. Seu Gabriel, o avô de Jorge Luis e, por sinal, também o aniversariante do dia, fazia de seu escritório uma espécie de refúgio da arte em sua casa: duas das paredes eram, em toda sua extensão, repletas de livros, fossem eles filosóficos (alemães numa prateleira, franceses noutra, ingleses e autores clássicos mais adiante), fossem livros técnicos – havia desde livros de Cálculo, Física e Química até volumosos tomos de Direito, e até mesmo coleções completas de Biologia e Anatomia – ; mas, em sua grande maioria, eram os livros puramente literários que dominavam o ambiente (dos gregos até a literatura brasileira contemporânea); nas duas paredes que não continham livros, cópias de pinturas famosas ocupavam estratégicos espaços, a Mona lisa , O Grito e o Rembrandt Lição de Anatomia do Dr. Tulp na parede oposta à entrada; na parede contrária a esta, expunham-se quadros mais contemporâneos: Les Demoiselles d'Avignon, A persistência da memória, Os retirantes; há um canto, espalhavam-se alguns instrumentos musicais: um contrabaixo, dois violinos, uma flauta doce, um saxofone, um violão, duas gaitas e um oboé; estes fechavam a vista, para quem entrava, às quatro fileiras de cd’s e uma de vinis, que seu Gabriel coletara em sete décadas vividas: música erudita, jazz, blues, MPB e clássicos do rock progressivo.

Jorge Luis, que praticamente crescera na casa dos avós, e muitos e marcantes momentos vivera com o avô naquele escritório, seguiu o mesmo ritual que invariavelmente seguia ao entrar ali: passou algum tempo admirando as pinturas (em particular, A persistência da memória, pelo qual ele era fascinado – aliás, por toda a obra de Dali) e, em seguida, dirigiu-se ao canto dos instrumentos musicais, pousando sua mão ansiosa sobre o saxofone, uma de suas paixões. O pai dele, Miguel Ângelo, filho de seu Gabriel, que executava o violino com maestria, tentara influenciá-lo a também tocar violino, mas Jorge Luis, apesar de ter aprendido alguma coisa, dedicara seu amor ao sax, que era também o instrumento favorito de seu avô. Após tomar o sax em suas mãos, o rapaz começou a tocar, com uma interpretação acima da média, o solo de sopro de Money, do Pink Floyd.

– Esse é um dos solos de sax que eu mais gosto.

Assustado por ter sido pego de surpresa num momento em que tocava de forma, digamos, mais íntima, Jorge Luis virou-se rapidamente para ver quem falara e deu de cara com o sorriso satisfeito de seu Gabriel, que o observava da entrada do escritório.

– Há quanto tempo você está aí? – perguntou Jorge Luis, aliviado por ver que não era nenhum desconhecido.

– Digamos que acompanhei a sua exímia apresentação quase que por inteiro – respondeu seu Gabriel, com um brilho quase malicioso no olhar, enquanto ia na direção do neto.

– Ah, sacanagem, vô! Eu nem devia parabenizar o senhor agora, o senhor sabe que eu não gosto de ser observado quando estou tocando... – pilheriou o rapaz, levantando-se em seguida, dando um forte abraço no avô e parabenizando-o, apesar da brincadeira.

– Muito obrigado, muito obrigado, meu neto – agradeceu seu Gabriel, contente. – Mas, me diga: você também está fugindo da balbúrdia lá de baixo?

O garoto deu uma gargalhada ligeira. “Você me conhece mesmo, né, vô? Sabe que eu não gosto de multidões.” Ao que o avô respondeu: “Eu também não, Jorginho, mas você sabe como é sua avó: pra ela, uma data dessas jamais poderia passar sem uma festança digna. ‘Não, não, Gabriel, setenta anos exigem uma verdadeira celebração’, foi o que ela disse.”

E eles ficaram assim, conversando amigavelmente, o avô e o neto, enquanto ninguém vinha atrás de ambos perguntar-lhes por que não estavam no andar de baixo como todos, já que um era o próprio aniversariante e o outro completaria a maioridade no dia seguinte, o que os tornava as personagens principais da noite. Jorge Luis estava feliz, escutando as sempre sábias palavras de seu Gabriel e rindo sempre que ele fazia uma de suas piadas sutis, mas notava alguma coisa de diferente no semblante de seu avô, qualquer coisa que ele (o avô) não procurava disfarçar, como se quisesse mesmo que Jorge Luis percebesse essa diferença. Não suportando mais aquela dúvida e, dada a intimidade que havia entre os dois, o rapaz indagou ao avô se havia alguma coisa que o estava perturbando.

Seu Gabriel, ao ouvir a pergunta, sorriu; um sorriso daqueles que alguém dá quando já espera que alguma coisa aconteça, como quem sabe o que virá em seguida. Não disse nada por alguns instantes, depois foi até a porta dupla e, observando antes de ambos os lados para ver se não havia ninguém por perto, fechou as portas, retornando ao local em que estava sentado, e tornou a perscrutar os olhos do neto. Este, não se pode dizer que estava preocupado, mas tampouco a tranqüilidade mostrava algum sinal em sua fronte: uma ansiedade desmedida tomou conta de seus pensamentos, e ele se perguntava que coisa era aquela o avô tinha para lhe dizer que exigia tamanha cautela.

– Tenho uma história para lhe contar, Jorge Luis – iniciou o avô. – Uma história que vai mudar a sua vida.

Ao ouvir isso, a ansiedade do rapaz atingiu um grau tão elevado que seu coração começou a palpitar mais rápido, pá-pum, pá-pum, pá-pum, numa velocidade poucas vezes alcançada. Ele não disse nada, apenas fez um movimento quase imperceptível para que o avô prosseguisse.

– Apesar do teor fantástico do que irei lhe contar ­– recomeçou seu Gabriel – , não pense que se trata de uma piada ou de qualquer invencionice nascida da loucura ou da decrepitude; você bem sabe o quanto seu avô ainda é lúcido, e que, quando o assunto é sério, as brincadeiras não encontram eco em minhas palavras. – Nesse ponto, ele parou novamente de falar, olhando diretamente nos olhos de Jorge Luis, de modo a fazê-lo compreender que realmente não se tratava de um logro ou de uma peça, e, percebendo que o neto entendera, continuou. – Esclarecido isto, ouça o que tenho a lhe dizer:

“Certo dia, há exatos quarenta e nove anos e um dia, eu tive uma conversa com o meu próprio avô, assim como estamos tendo esta conversa agora. Ele também estava completando setenta anos naquela data, e eu faria vinte e um anos no dia seguinte, assim como eu e você, neste momento. E ele me contou quase a mesma história que tenho para lhe contar agora. Uma história que fala sobre toda uma vida que tivemos fora desta realidade, e que você também terá.

“Este é meu último dia de vida." Nessa hora, Jorge Luis fez menção de dizer algo, mas seu Gabriel deu a entender que ele deveria apenas escutar por enquanto, o que o garoto obedeceu. "Não tema: nós ainda passaremos quarenta e nove anos juntos, no lugar que o aguarda. Amanhã, eu morrerei, mas, para você, este amanhã tardará a chegar. Porém, deixe-me continuar.

“Após a conversa com meu avô, eu fiquei muito perturbado; não sabia se o que ele me contara não passava de uma fantasia ou se realmente tinha um quê de verdade, e eu também nem sabia o que me assustava mais. Por conta disso, demorei a dormir aquela noite, mas quando o consegui, uma surpresa: assim que cerrei os olhos, estes se abriram novamente, mas eu não mais me encontrava em minha cama, em meu quarto; estava deitado numa cama de palha dentro de uma cabaninha, com uma janela ao meu lado, de onde um sol incompreensível me convidava a desfrutar dos prazeres da manhã.

“Ainda deveras perturbado com aquela cena, que não tinha o menor aspecto de sonho, fui surpreendido com o aparecimento de meu avô à soleira da porta, vestido com uma túnica que muito se assemelhava às dos mestres da Antiguidade. Ele se sentou na beirada de minha cama e me reafirmou tudo o que tinha me contado algumas horas antes: que eu não devia ficar preocupado, que aquilo não era um sonho ou uma ilusão, que eu passaria quarenta e nove anos com ele naquela paisagem rústica e que envelheceria conforme a minha natureza pessoal, mas que quando retornasse a minha vida original, eu despertaria como de uma noite de sono comum, como se nada tivesse acontecido, a não ser pelas lembranças em minha mente. E o mais importante: que, durante todo esse tempo, eu aprenderia todas as atividades que possibilitariam que eu me tornasse um mestre também, se eu quisesse: aprenderia diversas técnicas meditativas e outras práticas místicas; dominaria vários tipos de artes marciais e como utilizá-las para conhecer meu próprio eu e controlar meus sentimentos e minhas paixões; instruir-me-ia também em artes plásticas, música, técnicas de sobrevivência e em qualquer habilidade proveitosa para o restabelecimento do Ser e da paz de espírito. Tudo isso, como ele já me havia dito, no intervalo de quarenta e nove anos.”

– E assim, meu neto, eu passei quarenta e nove anos numa outra realidade, treinando com meu avô e, quando o treinamento chegou ao fim, retornei à mesma idade que tinha, no mesmo local em que estava anteriormente à partida, como se todos estes anos correspondessem a apenas algumas horas nesta realidade, e passei outros quarenta e nove anos de existência, até chegar a este momento, em que devo prepará-lo para ser o novo discípulo.

Terminada a história, a mente de Jorge Luis transbordava de dúvidas, tantas que ele nem sabia por onde começar. Aquilo era realmente verdade? Como isso era possível? Se sim, por que ele? Por que o avô? Quem estava por trás dessa “viagem”? Que tipo de mistério se escondia nessa história mirabolante, que magia enigmática era esta? Quanta coisa o avô sabia durante todos estes anos, e simplesmente nunca revelara ao neto, ou a qualquer outra pessoa?

Antes que Jorge Luis pudesse metralhar o avô com todos estes questionamentos e muitos outros mais, a porta se escancarou e D. Isabel, avó de Jorge Luis e esposa de seu Gabriel, entrou esbaforida na sala, resmungando que neto e avô deveriam estar lá embaixo com todos, que ela já estava procurando por eles há quase vinte minutos e que já iriam cantar o parabéns, só faltavam o aniversariante e seu neto, e que era melhor que eles se apressassem. E saiu de novo, atarantada, deixando os dois novamente a sós.

– Eu sei que você tem todo o tipo de perguntas a me fazer agora – disse seu Gabriel, depois que D. Isabel afastara-se o suficiente –, mas elas não são necessárias, ou oportunas: você terá muito tempo para fazer qualquer indagação em breve, muito em breve. Só lhe peço que você não revele em hipótese alguma a ninguém o assunto sobre o qual conversamos. Mas venha, venha; não vamos deixar sua avó mais chateada, vamos descer.

Jorge Luis ficou observando o avô se levantar, caminhar até a entrada do escritório e estacar, como se aguardasse que o neto o acompanhasse. Ele permaneceu ainda alguns segundos pensando, muito confuso, mas resolveu levantar-se e seguir com ao avô. Afinal de contas, o que quer que fosse lhe acontecer, aconteceria em poucas horas, e ele tinha paciência para aguardar.

7 comentários:

Air disse...

Olá, seu gato! :}
Gostei de seu comentário no meu blog, saiba que será sempre bem vindo.
A alternativa correta era uma mistura de todas aquelas que você disse (exceto a que dizia que desconsiderasse suas bobagens).

Gostei de seu último texto "Eu sou você". Metalinguagem pura. Pude até pensar pelo lado das personagens que damos vida e encerramos... O 'Ele' controlando tudo, que faz pensar que nós também podemos ser personagens escritos e manipulados. E acho que era sua intenção.

Então, tendo me deparado com um texto como este, vai ser difícil eu não voltar por aqui. Enquanto isso... aguardo. ;}

Sara Marinho disse...

Primeira vez que visito teu blog, estou ainda por conhecê-lo, mas considero desde ja o texto abaixo como um convite para os demais que escreves. O diálogo curioso de dois personagens distintos e ainda assim intrínsecos um ao outro só mostrou que o autor tem uma ótima capacidade de criar imagens novas em um texto original.
Parabéns.

Felinos têm porta aberta em meu blog.

Seane Melo, Secoelho disse...

Se ainda não nos conhecíamos, a partir deste texto pode dizer que já te conheço. Pois tenho uma teoria que diz: conheça uma pessoa através da descrição que ela fizer sobre um escritório!
Gostei do seu texto, senhor gato!
Gostei muito das personagens que o senhor compôs: Jorge Luis (Borges?) e Gabriel (Garcia Marquez?);]
Espero que tenha continuação...

Anônimo disse...

porra leite, acaba logo isso, to agoniado querendo saber o fim! hahaha
:)
tenho uma proposta pra ti.
tu será convidado a participar do algo mágico.
eu tu e luis pedro. o que acha?

gato de Schrödinger disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
gato de Schrödinger disse...

Com certeza, este Gato encaminhará sua proposta ao nosso amigo em comum, o sr. Maleita, mas (in)felizmente, não sou o próprio. Não sei de onde surgiu tal sugestão, mas tenho a impressão de que talvez seja devido à constante presença da srta. Secoelho, namorada dele, nos comentários, mas isso não passa de coincidência, porquanto conhecemo-nos virtualmente.

No mais, agradeço aos recentes elogios, ainda que pontuados por uma confusão a respeito da identidade deste Gato.

Um abraço.

Camila Chaves disse...

aaah! toda vida que eu chego aqui há um texto maior, mas as lembranças dos textos de outras horas lidos, me fazem não vacilar em pôr o olhar um pouco a frente e saltar na primeira palavra.

eu adoro textos nesse estilo. o próprio começo nos deixa com a impressão de que já pegamos a coisa acontecendo. é como se estivesse assistindo um programa na televisão e, de repente, fosse surpreendida com uma cena bem movimentada, como a descrita inicialmente.

colocando um pouco de pessoalidade em meu comentário, também confesso que assim como o jorge luis tenho sido cada vez menos presentes nas festas pomposas de família.

acho que já não sou mais a mesma camila-sempre-gentil-e-paciente para ouvir aquelas velhas histórias de atitudes reacionárias nem todos aqueles 'conselhos' daqueles que só querem o teu bem, como o último de um tio: "você vai se formar. agora, pense primeiro no dinheiro, em te estabilizar, depooois você pode pensar em fazer as coisas que gosta, por paixão". essa foi a gota.

mas... voltando a esse texto pra lá de prazeroso, gosto também da forma detalhada como descreves os cenários... é como se eu me deslocasse até a cena e acompanhasse tudo, bem de perto.

bom, assim como todos, achei que esse texto deixou um gostinho de "quero mais". havia tempos que não passava por aqui. problemas de conexão. mas, sempre que os resolvo é invitável não passar aqui.

abraços, sr. gato.
(=