domingo, 15 de junho de 2008

(...)

(aguarde)

domingo, 8 de junho de 2008

O destino de Jorge Luis

O barulho dos convidados estava recheado de um constante murmurinho de conversas de todos os tipos, sons de talheres roçando os pratos e as tigelas, tilintar de copos em brindes diversos e ruídos de passos, como é próprio desse tipo de festa, em que familiares e amigos reúnem-se para comemorar alguma data de caráter bastante especial, mas, levados por valores quiçá discutíveis, deixam-se levar pelas aparências e mostram-se em toda espécie de poses, sorrisos amarelos e roupas da moda; em toda sorte de intelectualidades vulgares, através dos mais variados tipos de discussões – “Você vai me desculpar, tio Jonatas, mas a questão principal nessa crise econômica é a falta de investimentos do governo no setor agrícola”; “Não, nada disso, Denise: Nietzsche não era ateu, apenas denunciava os abusos do cristianismo” – ; ou, simplesmente, desfiando posições sociais das mais invejáveis possíveis.

Foi justamente para escapar dessas situações incômodas que Jorge Luis mal se fez presente na casa dos avós e já estava subindo velozmente as escadas em busca de um local mais sossegado, mais recolhido. Encontrou o abrigo que procurava no escritório do avô, que misteriosamente achava-se destrancado. Seu Gabriel, o avô de Jorge Luis e, por sinal, também o aniversariante do dia, fazia de seu escritório uma espécie de refúgio da arte em sua casa: duas das paredes eram, em toda sua extensão, repletas de livros, fossem eles filosóficos (alemães numa prateleira, franceses noutra, ingleses e autores clássicos mais adiante), fossem livros técnicos – havia desde livros de Cálculo, Física e Química até volumosos tomos de Direito, e até mesmo coleções completas de Biologia e Anatomia – ; mas, em sua grande maioria, eram os livros puramente literários que dominavam o ambiente (dos gregos até a literatura brasileira contemporânea); nas duas paredes que não continham livros, cópias de pinturas famosas ocupavam estratégicos espaços, a Mona lisa , O Grito e o Rembrandt Lição de Anatomia do Dr. Tulp na parede oposta à entrada; na parede contrária a esta, expunham-se quadros mais contemporâneos: Les Demoiselles d'Avignon, A persistência da memória, Os retirantes; há um canto, espalhavam-se alguns instrumentos musicais: um contrabaixo, dois violinos, uma flauta doce, um saxofone, um violão, duas gaitas e um oboé; estes fechavam a vista, para quem entrava, às quatro fileiras de cd’s e uma de vinis, que seu Gabriel coletara em sete décadas vividas: música erudita, jazz, blues, MPB e clássicos do rock progressivo.

Jorge Luis, que praticamente crescera na casa dos avós, e muitos e marcantes momentos vivera com o avô naquele escritório, seguiu o mesmo ritual que invariavelmente seguia ao entrar ali: passou algum tempo admirando as pinturas (em particular, A persistência da memória, pelo qual ele era fascinado – aliás, por toda a obra de Dali) e, em seguida, dirigiu-se ao canto dos instrumentos musicais, pousando sua mão ansiosa sobre o saxofone, uma de suas paixões. O pai dele, Miguel Ângelo, filho de seu Gabriel, que executava o violino com maestria, tentara influenciá-lo a também tocar violino, mas Jorge Luis, apesar de ter aprendido alguma coisa, dedicara seu amor ao sax, que era também o instrumento favorito de seu avô. Após tomar o sax em suas mãos, o rapaz começou a tocar, com uma interpretação acima da média, o solo de sopro de Money, do Pink Floyd.

– Esse é um dos solos de sax que eu mais gosto.

Assustado por ter sido pego de surpresa num momento em que tocava de forma, digamos, mais íntima, Jorge Luis virou-se rapidamente para ver quem falara e deu de cara com o sorriso satisfeito de seu Gabriel, que o observava da entrada do escritório.

– Há quanto tempo você está aí? – perguntou Jorge Luis, aliviado por ver que não era nenhum desconhecido.

– Digamos que acompanhei a sua exímia apresentação quase que por inteiro – respondeu seu Gabriel, com um brilho quase malicioso no olhar, enquanto ia na direção do neto.

– Ah, sacanagem, vô! Eu nem devia parabenizar o senhor agora, o senhor sabe que eu não gosto de ser observado quando estou tocando... – pilheriou o rapaz, levantando-se em seguida, dando um forte abraço no avô e parabenizando-o, apesar da brincadeira.

– Muito obrigado, muito obrigado, meu neto – agradeceu seu Gabriel, contente. – Mas, me diga: você também está fugindo da balbúrdia lá de baixo?

O garoto deu uma gargalhada ligeira. “Você me conhece mesmo, né, vô? Sabe que eu não gosto de multidões.” Ao que o avô respondeu: “Eu também não, Jorginho, mas você sabe como é sua avó: pra ela, uma data dessas jamais poderia passar sem uma festança digna. ‘Não, não, Gabriel, setenta anos exigem uma verdadeira celebração’, foi o que ela disse.”

E eles ficaram assim, conversando amigavelmente, o avô e o neto, enquanto ninguém vinha atrás de ambos perguntar-lhes por que não estavam no andar de baixo como todos, já que um era o próprio aniversariante e o outro completaria a maioridade no dia seguinte, o que os tornava as personagens principais da noite. Jorge Luis estava feliz, escutando as sempre sábias palavras de seu Gabriel e rindo sempre que ele fazia uma de suas piadas sutis, mas notava alguma coisa de diferente no semblante de seu avô, qualquer coisa que ele (o avô) não procurava disfarçar, como se quisesse mesmo que Jorge Luis percebesse essa diferença. Não suportando mais aquela dúvida e, dada a intimidade que havia entre os dois, o rapaz indagou ao avô se havia alguma coisa que o estava perturbando.

Seu Gabriel, ao ouvir a pergunta, sorriu; um sorriso daqueles que alguém dá quando já espera que alguma coisa aconteça, como quem sabe o que virá em seguida. Não disse nada por alguns instantes, depois foi até a porta dupla e, observando antes de ambos os lados para ver se não havia ninguém por perto, fechou as portas, retornando ao local em que estava sentado, e tornou a perscrutar os olhos do neto. Este, não se pode dizer que estava preocupado, mas tampouco a tranqüilidade mostrava algum sinal em sua fronte: uma ansiedade desmedida tomou conta de seus pensamentos, e ele se perguntava que coisa era aquela o avô tinha para lhe dizer que exigia tamanha cautela.

– Tenho uma história para lhe contar, Jorge Luis – iniciou o avô. – Uma história que vai mudar a sua vida.

Ao ouvir isso, a ansiedade do rapaz atingiu um grau tão elevado que seu coração começou a palpitar mais rápido, pá-pum, pá-pum, pá-pum, numa velocidade poucas vezes alcançada. Ele não disse nada, apenas fez um movimento quase imperceptível para que o avô prosseguisse.

– Apesar do teor fantástico do que irei lhe contar ­– recomeçou seu Gabriel – , não pense que se trata de uma piada ou de qualquer invencionice nascida da loucura ou da decrepitude; você bem sabe o quanto seu avô ainda é lúcido, e que, quando o assunto é sério, as brincadeiras não encontram eco em minhas palavras. – Nesse ponto, ele parou novamente de falar, olhando diretamente nos olhos de Jorge Luis, de modo a fazê-lo compreender que realmente não se tratava de um logro ou de uma peça, e, percebendo que o neto entendera, continuou. – Esclarecido isto, ouça o que tenho a lhe dizer:

“Certo dia, há exatos quarenta e nove anos e um dia, eu tive uma conversa com o meu próprio avô, assim como estamos tendo esta conversa agora. Ele também estava completando setenta anos naquela data, e eu faria vinte e um anos no dia seguinte, assim como eu e você, neste momento. E ele me contou quase a mesma história que tenho para lhe contar agora. Uma história que fala sobre toda uma vida que tivemos fora desta realidade, e que você também terá.

“Este é meu último dia de vida." Nessa hora, Jorge Luis fez menção de dizer algo, mas seu Gabriel deu a entender que ele deveria apenas escutar por enquanto, o que o garoto obedeceu. "Não tema: nós ainda passaremos quarenta e nove anos juntos, no lugar que o aguarda. Amanhã, eu morrerei, mas, para você, este amanhã tardará a chegar. Porém, deixe-me continuar.

“Após a conversa com meu avô, eu fiquei muito perturbado; não sabia se o que ele me contara não passava de uma fantasia ou se realmente tinha um quê de verdade, e eu também nem sabia o que me assustava mais. Por conta disso, demorei a dormir aquela noite, mas quando o consegui, uma surpresa: assim que cerrei os olhos, estes se abriram novamente, mas eu não mais me encontrava em minha cama, em meu quarto; estava deitado numa cama de palha dentro de uma cabaninha, com uma janela ao meu lado, de onde um sol incompreensível me convidava a desfrutar dos prazeres da manhã.

“Ainda deveras perturbado com aquela cena, que não tinha o menor aspecto de sonho, fui surpreendido com o aparecimento de meu avô à soleira da porta, vestido com uma túnica que muito se assemelhava às dos mestres da Antiguidade. Ele se sentou na beirada de minha cama e me reafirmou tudo o que tinha me contado algumas horas antes: que eu não devia ficar preocupado, que aquilo não era um sonho ou uma ilusão, que eu passaria quarenta e nove anos com ele naquela paisagem rústica e que envelheceria conforme a minha natureza pessoal, mas que quando retornasse a minha vida original, eu despertaria como de uma noite de sono comum, como se nada tivesse acontecido, a não ser pelas lembranças em minha mente. E o mais importante: que, durante todo esse tempo, eu aprenderia todas as atividades que possibilitariam que eu me tornasse um mestre também, se eu quisesse: aprenderia diversas técnicas meditativas e outras práticas místicas; dominaria vários tipos de artes marciais e como utilizá-las para conhecer meu próprio eu e controlar meus sentimentos e minhas paixões; instruir-me-ia também em artes plásticas, música, técnicas de sobrevivência e em qualquer habilidade proveitosa para o restabelecimento do Ser e da paz de espírito. Tudo isso, como ele já me havia dito, no intervalo de quarenta e nove anos.”

– E assim, meu neto, eu passei quarenta e nove anos numa outra realidade, treinando com meu avô e, quando o treinamento chegou ao fim, retornei à mesma idade que tinha, no mesmo local em que estava anteriormente à partida, como se todos estes anos correspondessem a apenas algumas horas nesta realidade, e passei outros quarenta e nove anos de existência, até chegar a este momento, em que devo prepará-lo para ser o novo discípulo.

Terminada a história, a mente de Jorge Luis transbordava de dúvidas, tantas que ele nem sabia por onde começar. Aquilo era realmente verdade? Como isso era possível? Se sim, por que ele? Por que o avô? Quem estava por trás dessa “viagem”? Que tipo de mistério se escondia nessa história mirabolante, que magia enigmática era esta? Quanta coisa o avô sabia durante todos estes anos, e simplesmente nunca revelara ao neto, ou a qualquer outra pessoa?

Antes que Jorge Luis pudesse metralhar o avô com todos estes questionamentos e muitos outros mais, a porta se escancarou e D. Isabel, avó de Jorge Luis e esposa de seu Gabriel, entrou esbaforida na sala, resmungando que neto e avô deveriam estar lá embaixo com todos, que ela já estava procurando por eles há quase vinte minutos e que já iriam cantar o parabéns, só faltavam o aniversariante e seu neto, e que era melhor que eles se apressassem. E saiu de novo, atarantada, deixando os dois novamente a sós.

– Eu sei que você tem todo o tipo de perguntas a me fazer agora – disse seu Gabriel, depois que D. Isabel afastara-se o suficiente –, mas elas não são necessárias, ou oportunas: você terá muito tempo para fazer qualquer indagação em breve, muito em breve. Só lhe peço que você não revele em hipótese alguma a ninguém o assunto sobre o qual conversamos. Mas venha, venha; não vamos deixar sua avó mais chateada, vamos descer.

Jorge Luis ficou observando o avô se levantar, caminhar até a entrada do escritório e estacar, como se aguardasse que o neto o acompanhasse. Ele permaneceu ainda alguns segundos pensando, muito confuso, mas resolveu levantar-se e seguir com ao avô. Afinal de contas, o que quer que fosse lhe acontecer, aconteceria em poucas horas, e ele tinha paciência para aguardar.

domingo, 25 de maio de 2008

Eu sou Você

– Eh... Com licença...

– Pois não?

– Eu queria te dizer uma coisa... Posso?

– Que coisa?

– Uma coisa.

– Hm... Pode, pode sim. O que é?

– Bom, eu sei que é meio estranho te dizer isso...

– Não, não, pode falar. Agora eu fiquei curioso.

– Tem certeza?

– Não foi você que disse que queria falar? Então: agora fala.

– É verdade... Bom, então lá vai...

– Sim?

– Eu sou Você.

– O quê?

– Eu sou Você.

– Você sou eu? Como assim?

– Ora, é isso mesmo que você ouviu: eu sou você, você sou eu.

– Eu não sou você.

– Claro que é. Nós estamos sendo escritos pela mesma Pessoa.

– Como assim, “escritos”?

– Há Alguém escrevendo o que estamos falando.

– Você é doido...

– Então você também é doido. Nós somos doidos.

– Ai, ai, é cada uma que me aparece... Olha só, é o seguinte: eu vou te dar uma chance de provar que o que você ta falando é verdade.

– Tudo bem, provarei. Começo lhe fazendo uma simples pergunta: onde você estava antes?

– Antes?

– É, antes. Antes de eu falar com você.

– Eu estava ali.

– “Ali”, onde?

– Ora... Ali!

– Você está me enrolando. Você não sabe onde estava!

– Claro que sei.

– Onde?

– Ta bom. Suponhamos que você esteja certo e eu não saiba onde estava. O que isso prova?

– Prova que você não sabe onde estava porque só começou a existir assim que Ele começou a escrever.

– “Ele”, quem?

– Ele. O Autor.

– Você é louco...

– Não sou louco. Pense um pouco: você está aqui agora conversando comigo e não tem a menor idéia de onde estava antes. De repente, eu o chamei e nós iniciamos este diálogo. Que é na verdade um monólogo. Do Autor.

– Você está me deixando confuso...

– Desculpe. Mas é a verdade.

– Será?... Como você pode ter certeza?

– Através da intuição e do raciocínio. Veja, vamos continuar com a prova: onde você está agora?

– Agora...? Eu... Eu... Eu não sei!

– Está vendo? Você nem sabe onde está agora mesmo. Mas não se desespere, ainda há mais uma perguntinha a ser feita, pra finalizar: quem é você?

– Ah, meu Deus... Eu também não sei! O que é isso? Como posso não saber todas essas coisas?! Como posso não saber de onde eu vim, onde estou e quem eu sou? É impossível!

– Não é impossível. Está acontecendo agora.

– VOCÊ QUER ME DEIXAR MALUCO? É ISSO?

– Não, sinto muito... Minha intenção era simplesmente alertá-lo sobre estas coisas e dizer que nós somos a mesma Pessoa.

– Tudo bem, me desculpe... Eu me exaltei. Mas é que é tão difícil... Eu nunca poderia imaginar...

– Eu sei, eu sei... Também passei por isso.

– Hm... Me fale mais sobre o Autor.

– Não sei muito sobre Ele. Apenas que Ele está nos escrevendo.

– Ele está nos escrevendo mesmo agora? Neste instante?

– Sim. Cada palavra.

– Fascinante... Como Ele faz isso?

– Bom, parece que antigamente Ele usava uns instrumentos divinos chamados Caneta, ou Lápis, ou Pena, e Papel. Escrevia com o Lápis (ou a Caneta ou a Pena) no Papel. Mas, hoje em dia, acredito que estejamos sendo digitados.

– “Digitados”?

– Isso. Escritos por um Teclado, no Computador.

– Quer dizer que estamos, agora, no Computador?

– É o que eu acredito.

– O que é um Computador?

– Isso eu ainda não sei.

– Minha nossa... Tudo isso é muito novo pra mim, nem sei o que pensar.

– Pois é...

– Mas, vem cá, você não disse que eu sou você?

– Sim, porque estamos sendo escritos pela mesma Pessoa.

– Então nós somos o Autor?

– Não. O Autor é nós dois ao mesmo tempo, mas nós não somos o Autor. Ele é e pode ser qualquer coisa que quiser. Basta Ele escrever.

– Mas por que Ele quis ser, escrever, sei lá, nós? Pensando bem, por que Ele escreve?

– Você tocou o cerne da questão. Acho que isso nunca saberemos ao certo. Só podemos fazer suposições, enquanto não chega o Fim do Texto.

– “Fim do Texto”?

– É. Quando Ele pára de escrever.

– E Ele pára de escrever?

– Sim. Eventualmente.

– E o que acontece conosco?

– Não sei.

– Como, você não sabe? Você sabe tantas coisas e não sabe o mais importante?

– Na verdade, acho que foi o contrário: mostrei que não sabemos nada.

– Não entendo...

– Você parece que já assimilou algumas coisas, mas ainda não compreendeu o essencial. Eu sou Você. Eu passei a existir na mesma hora em que você, talvez um pouco antes, mas somente quando o Autor começou a escrever. Não faço a menor idéia de por que eu sei algumas coisas e não sei outras, eu simplesmente sei. Porque Ele quis! O motivo d’Ele o querer, eu não sei.

– Mas isso já é demais... Estou a ponto de enlouquecer...! Já não bastava não conhecermos nossa origem ou quem somos nós ou nem sabermos onde estamos, já que nada adianta sabermos que estamos no Computador e não sabermos o que é o Computador; ainda temos que conviver com o fato de que uma hora chegaremos ao Fim do Texto e nem sabemos pra onde vamos depois!!!

– E nem o porquê de tudo isso.

– Exato! Nem isso! Saber que a qualquer instante o Texto pode acabar e que estas podem ser minhas últimas Palavras... E se minhas últimas Palavras forem sem sentido, sem nexo, um amontoado de pensamentos inúteis ao fim de um diálogo sem motivo, que começou ao acaso, um...

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Velho medo

Pense um pouco: se você visse uma criança sofrendo maus-tratos nas mãos de um de seus pais, você se perguntaria se aquele pai realmente teria condições de cuidar da criança, não? Num ímpeto mesmo, poderia querer arrancá-la das garras do inconseqüente pai ou da desnaturada mãe, certo de que este não tinha mais direito de cuidar do filho. E ainda que você fosse insensível a ponto de reagir com indiferença a uma visão destas, jamais o poderia fazer o Estado: como determina o Estatuto da Criança e do Adolescente, “é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”. Partindo desse princípio, o Estado não só não permaneceria alheio ao incidente como poderia até destituir a guarda da criança.

Pensado isto, é possível fazer a seguinte analogia: o governo brasileiro, em certa medida, é como se fosse uma espécie de “pai”, de “tutor” de todas as instâncias as quais fica a seu cargo administrar, desde a vida de seus cidadãos até as eventuais necessidades dos Estados; sem dúvida, nessa lista, entraria também o zelo por regiões de grande interesse estratégico e ambiental, como a Amazônia, a maior e mais importante floresta equatorial do mundo, tratada com tanto descaso pelas nossas autoridades. Ou seja: em nossa discutível analogia, o governo brasileiro seria como um pai indiferente e cruel que, se não maltrata, permite que outros continuamente maltratem sua filha Amazônia, à vista de todos. E, também nesta situação, há quem pense que este continental pai não mais deveria prosseguir como tutor incondicional de sua filha...

Também pudera. Deixando a alegoria inicial de lado, a Amazônia é um território de suma importância mundial, não apenas pela sua imensurável diversidade animal e vegetal ou por suas encantadoras belezas naturais, mas também porque pode esconder em sua fauna segredos que poderão ser muito úteis para a humanidade – entre vários outros fatores, claro – , e o Brasil, país que contém dentro de seus limites geográficos 60% da floresta amazônica, vem miseravelmente falhando em conter o avanço do desmatamento e da poluição na região, pondo em risco este ecossistema de valor inestimável para os brasileiros e, principalmente, para o planeta Terra. Por isso, seria muita ingenuidade nossa acreditar que as nações que mandam no mundo – o G-8 – permanecerão de braços cruzados enquanto observam-nos destruir a Amazônia e todas as suas possibilidades. Se o ritmo de desflorestamento continuar aumentando nessa velocidade, é quase garantida uma invasão estrangeira, por mais que os verdadeiros motivos por trás de uma ação dessas fossem outros, mais mesquinhos e abjetos: insistindo na destruição, estaríamos dando o pretexto que faltava para estas ambiciosas nações finalmente pusessem as mãos nas cobiçadas riquezas amazônicas.

E é até possível que a temida invasão se torne realidade mais cedo que imaginamos, e nem precisamos recorrer ao fato de que a quantidade de ONG's estrangeiras atuando na região já pode ser considerada uma invasão: recentemente o New York Times indagou “inocentemente” a quem pertence a Amazônia e disse que "ao contrário do que os brasileiros acreditam, a Amazônia não é propriedade deles, ela pertence a todos nós". Em resposta, o novo ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, declarou que "Quem faz uma proposta dessas deveria passar por uma requalificação psicológica, tal o disparate que contém. Os donos (da Amazônia) somos nós", numa tentativa de encerrar uma discussão que só tende a ficar cada vez mais complicada nos próximos anos, em virtude de uma necessidade cada vez maior de recursos energéticos e por conta da crescente discussão em torno dos efeitos do aquecimento global e da poluição no clima mundial.

Num cenário como esse, não é de todo estranha a notícia de agressão sofrida por um engenheiro da Eletrobrás por um grupo de índios caiapós, durante o encontro que discute a possível construção da hidrelétrica de Belo Monte no rio Xingu, afluente do glorioso Amazonas. Talvez seja mesmo uma imagem de teor emblemático. Paulo Fernando Rezende, o engenheiro, que defendia a instalação da hidrelétrica, foi atacado com golpes de facão e espancado pelos índios, uma atitude que deve ser execrada, jamais vista como algo louvável. Mas não se pode permitir que ela seja utilizada como uma tentativa de desmerecer o ponto de vista defendido pelos caiapós, apenas uma das diversas etnias indígenas que vivem às margens do Xingu e que teriam que ser deslocadas do lugar em que vivem a gerações para que a tal hidrelétrica fosse produzida. Hidrelétrica esta que, ao contrário do que diz o governo, não está sendo construída para benefício da população brasileira, muito menos da paraense, visa apenas fornecer energia para as empresas mineradoras da região, que poluem e saqueiam o meio ambiente no qual estão inseridas sem que sequer tragam qualquer compensação econômica para a região ou melhoria na qualidade de vida do povo do Pará.

A mídia, sempre tendenciosa, omite as questões mais importantes, implicitamente defendendo a construção da hidrelétrica, sem ligar para todos os problemas que ela irá gerar, a despeito do pouco que contribuirá para o país. É possível que, mais uma vez, ela esteja defendendo interesses escusos, provavelmente estrangeiros, participando ativamente da filosofia de vida que rege a maior parte da elite brasileira, que é a de vender o país em troca de um lucro insensato e inconseqüente, entregando nossas riquezas de mão beijada a qualquer um. E nós aqui, correndo o risco de ver o velho medo de que a Amazônia seja controlada por outros países tornar-se uma triste realidade.

Impotentes.

domingo, 18 de maio de 2008

O paranóico

Encontraram-no escondido num matagal em meio a arbustos e palhas, enroscado em cipós e urzes, com arranhões e cortes diversos espalhados pelo corpo. Seu olhar denunciava um desequilíbrio mental proeminente e, enquanto era arrastado dali pelos homens da clínica de “repouso”, gritava histericamente o motivo de sua permanência naquele esconderijo:

– Me larguem, ele está aqui! O Predador está aqui, está me seguindo!

É preciso que dois fatos sejam ressaltados antes de prosseguir com a narrativa: em primeiro lugar, sim, o ‘Predador’ a que Vincent se referia era realmente o guerreiro extraterrestre fictício dos filmes O Predador, aquele com cabelos em forma de dreadlocks, mandíbula parecida com a de um caranguejo e cara de poucos amigos; em segundo, não era a primeira vez que ele era acometido daquele surto paranóico que o levava a buscar refúgio em lugares insólitos, pensando que havia alguém ou alguma criatura à espreita, perseguindo-o.

Nunca se soube ao certo como aquele problema psíquico se iniciara. A mãe dele, D. Lucy, punha a culpa nas drogas. Meses depois que descobrira que seu filho fumava maconha e sabe Deus o que mais, fora surpreendida pelo primeiro contato que teve com a doença de Vincent, quando este passou mais de dez horas trancafiado em seu quarto com medo de um assassino que – Vincent tinha certeza – estava oculto na vizinhança, esperando um vacilo de sua parte para matá-lo. Foi preciso que seu Josh, o pai, arrombasse a porta do quarto do filho para tirá-lo de lá.

Durante alguns dias, chegara-se mesmo a acreditar que poderia haver um bandido ou um criminoso qualquer tentando de fato matar Vincent, talvez em decorrência de um desentendimento com traficantes ou algo do tipo. Mas como a polícia jamais encontrara vestígios de um assassino em potencial nas redondezas, nem o rapaz parecia dar alguma indicação verossímil para a existência de tal personagem, a hipótese de pura fantasia mental ganhara força e terminara por sobrepor-se a qualquer outra possibilidade quando, semanas após a primeira manifestação crítica da paranóia persecutória, ele tivera um novo ataque, dessa vez fugindo em disparada da praça onde passeava com sua mãe, alegando que o assassino encontrava-se em algum dos prédios que os cercavam e de lá apontava uma sniper direto para sua cabeça. Ele até vira o laser vermelho da mira da arma em certo momento.

Assustada e sem saber o que fazer para ajudar o filho, D. Lucy pedira conselhos a amigas e estas lhe indicaram a clínica psiquiátrica do Dr. Leary, um eminente especialista em casos como aquele, bastante competente e discreto. Ela o procurara e, poucos dias após este encontro, Vincent estava sob a tutela do referido doutor, no Instituto de Recuperação Psíquica, que ficava um pouco afastado da cidade, um lugar agradável e cercado por uma paisagem natural bem convidativa. Vincent não ficara muito satisfeito com a decisão dos pais a princípio, mas com o tempo, por sentir uma segurança reforçada na clínica, achou de muito bom grado sua estadia por lá, conseguindo finalmente relaxar um pouco mais suas neuroses.

Durante dois meses, tudo correra muito bem. Afastado da influência negativa da cidade e das drogas ilícitas, com auxílio da medicação prescrita pelo Dr. Leary e das próprias sessões terapêuticas diárias com o mesmo, Vincent aparentava uma melhora visível, já tendo consciência de que sofria de um distúrbio conhecido como ‘paranóia’, que desencadeava por vezes delírios de grandeza ou, como no caso dele, de perseguição – e que, portanto, não havia nenhum assassino de verdade perseguindo-o, era tudo fruto de sua imaginação. Por isso, já não tinha medo de caminhar sozinho por entre as trilhas ao redor do instituto, nem de ficar desprotegido em lugares abertos e o Dr. Leary já dava como certa sua alta em poucos dias.

Mas esta certeza fora por água abaixo numa noite fria e chuvosa, véspera da saída de Vincent da clínica. Dr. Leary fora acordado às pressas pelas enfermeiras, que lhe informaram que o paciente 013 (Vincent, claro) arrombara a porta de sua alcova e desembestara numa fuga alucinada pelos corredores, e só fora contido por seis enfermeiros agindo em conjunto, que lhe aplicaram um sedativo e o puseram numa camisa-de-força, deixando-o em seguida na enfermaria, desacordado. Mais tarde, ao interrogar o rapaz, Dr. Leary descobrira o motivo do novo surto: Vincent tinha certeza de que, da janela de sua cela, avistara o ser mais pavoroso que já vira em toda sua vida: um Predador. Ele disse que ficara intrigado com alguma coisa ao lado de uma árvore, num lugar onde parecia não haver nada, mas que tinha “um certo movimento estranho”; de repente, o “lugar estranho” se transformou na horripilante criatura, por poucos instantes, mas o suficiente para Vincent compreender que o que ele vira era na verdade um Predador, o alienígena dos filmes, e que estava se utilizando de sua tecnologia de invisibilidade para surpreender Vincent em seu catre, quando este estivesse dormindo – mas o Predador provavelmente não contava que seu aparato da invisibilidade pudesse falhar justamente no instante em que Vincent, intrigado, observava-o. Achando que a sorte lhe dera uma oportunidade de se salvar, ele não pensara duas vezes e encetara a mal-sucedida fuga.

Dr. Leary ficara extremamente desapontado com aquela recaída às vésperas da cura total e também não pudera acreditar que, apesar de tudo que haviam conversado anteriormente, Vincent recusava-se a admitir que aquela visão não passara de uma nova modalidade de paranóia, dessa vez com uma acentuada dose de esquizofrenia – o que muito preocupava o pobre doutor. Mas ele nada pudera fazer para impedir que aqueles episódios voltassem a ocorrer, até mesmo com uma freqüência regular, apesar do aumento da medicação e da vigilância em torno de Vincent, o que nos traz ao fato que iniciou a história, quando ele conseguiu escapar da clínica e se embrenhou na mata, à guisa de se esconder da criatura.

Depois desse episódio, o Dr. Leary decidiu utilizar sua carta na manga mais poderosa, e talvez a última: a regressão. Através da terapia das vidas passadas – que aprendera com um excêntrico e misterioso psiquiatra hindu –, ele pretendia investigar as origens secretas daquele trauma e, com ajuda deste conhecimento, expurgar definitivamente da mente de Vincent aquelas paranóias deletérias. E, por incrível que pareça, deu certo: em pouco tempo, embora Vincent estivesse antes num estado quase perdido, ele começou a se recuperar de uma maneira inacreditável, recobrando a lucidez e o controle dos pensamentos, pouco a pouco, novamente a par da mesma certeza que havia conquistado no início de seu tratamento e perdido após o “aparecimento” dos Predadores, que era a de saber que tudo aquilo era uma construção ilusória provocada por sua mente e que as criaturas, óbvio, não poderiam ser reais, eram fictícias personagens de Cinema. Ele até mesmo se espantava com o fato de ter ficado por tanto tempo à mercê desses absurdos, o que fazia Dr. Leary se perguntar por que não usara aquele método desde o princípio, chegando a pôr a saúde mental do paciente em risco por conta de uma avaliação errônea de procedimento.

Seu Josh e D. Lucy não cabiam em si de felicidade ao receberem Vincent em casa novamente após quase dez meses de tratamento. Como era o filho único do casal, eles passaram todo esse tempo vivendo um inferno particular, com medo de perderem o filho para sempre. Portanto, festejaram bastante seu retorno e o fizeram prometer que não entraria mais para o mundo das drogas nem faria mais nada que pudesse pôr em risco sua sanidade mental. Vincent fez como os pais pediram e disse que dali pra frente daria um novo rumo a sua vida, que acessos como aquele só se tornaram possíveis porque as drogas perturbaram sua mente a tal ponto que ele não pudera mais distinguir o real do imaginário e que, com a ajuda do Dr. Leary, ele se fortalecera de modo a não mais se deixar levar por paranóias infundadas.

E as coisas sucederam conforme Vincent prometera aos pais durante alguns meses, até o fatídico dia em que um homem encapuzado surpreendera-o quando voltava da faculdade numa rua escura e, após pronunciar uma única palavra (“Finalmente!”), apunhalara-lhe na direção do coração, um golpe certeiro, enquanto Vincent caía, já agonizando e com a vista escurecendo, perguntando-se se aquilo era real ou apenas uma paranóia um pouco mais elaborada.

O assassino ficara ao lado de Vincent até que este já não esboçasse mais nenhuma reação, e já ia se retirar, quando de súbito materializou-se um Predador a sua frente, que o cortou em dois com uma pequena serra circular que trazia em seu antebraço, antes de se retirar para as trevas de onde surgira.