sexta-feira, 14 de setembro de 2007

O porão secreto

Floyd era um garoto estranho. Além de estranho, inteligente. Além de estranho e inteligente, muito, muito curioso. Curioso do tipo que não se aquietava até ir a fundo em suas dúvidas, em esmiúçá-las, em, uma a uma, retirar-lhes do emaranhado de teias que lhe compunham as idéias - idéias estas que eram várias, inúmeras, pois ele era bastante inteligente, do tipo que percebia que sua inteligência de nada valia em comparação à totalidade do Universo, que todo o conhecimento por ele adquirido não passava de um sopro vulgar no surreal tufão de mistérios da existência. Tudo isso, convenhamos, tornava-o um jovem deveras estranho, do tipo talvez excessivamente paranóico, um tanto quanto avoado, demasiadamente inconstante. Enfim.

O fato é que ele, já há um tempo considerável, andava também bastante apreensivo, pois tinha se metido numa enrascada. Em mais uma de suas noites de insônia pensando na vida e sondando o Insondável, vagando pela sua casa, sem saber como ou por que, possivelmente guiado por uma força sobrenatural ou algo do tipo, ele descobrira um vão secreto no corredor que dava para os quartos. Guiado pela sua curiosidade natural, ele adentrara o ambiente recém descoberto, não sem uma oportuna cautela e algum receio. Tateando às cegas o espaço a sua frente, agarrara uma cordinha suspensa no ar que, ao puxá-la, acendera uma luzinha logo acima de sua cabeça, iluminando todo o compartimento ao seu redor.

Ainda meio que sem acreditar no que havia descoberto, sentira-se invadir por uma espécie de calma alegria, seus olhos brilhavam de excitação: o porão, desmedidamente grande para algo escondido no subsolo de sua casa, estava recheado de estantes e prateleiras, todas elas abarrotadas de livros. Incontáveis livros! Seu êxtase era tal que ele nem ao menos dera trela a uma perguntinha que ficara incomodando a sua felicidade: "Mas de onde surgiu esse monte de livros escondido embaixo da minha casa?!" Talvez - e eu digo apenas "talvez", porque nunca se sabe como trabalha o Destino, essa entidade maluca e sempre disposta a nos pregar as mais imprevisíveis peças - se não tivesse ignorado esta perguntinha e tentasse desvendá-la, ele pudesse ter evitado o problema no qual se meteu.

Não vendo mais perigo naquele porão secreto além dos que já sabidamente ignorava, tratara de manter segredo sobre seu achado, frequentando-o sempre às escondidas, todas as madrugadas, assim que todos dormiam e ficava até quase o nascer do sol. Sua mãe até notara o aumento repentino de suas já costumeiras olheiras, mas nada comentara. Sua namorada também estranhou um pouco e lhe fez algumas perguntas nesse sentido, mas ele as contornava com tamanha maestria que ela achou que fosse apenas mais uma de suas estranhezas. Na faculdade, ele já tinha sido apelidado de "turista", pois raramente dava as caras por lá. Ninguém desconfiava do verdadeiro motivo de tais mudanças. E Floyd nunca tinha sido tão feliz.

Bom, pelo menos até o fatídico dia em que suas preocupações começaram. Numa de suas madrugadas no porão secreto, deparara-se com um livro de título, digamos, bastante sugestivo: O Livro Proibido. Apesar da hesitação inicial, seu lado curioso vencera a batalha contra a cautela e a prudência e ele terminara por abrir o livro. Imediatamente, este libertara-se de suas mãos, passando a girar descontroladamente no ar, suas páginas dançando como se à mercê de um vento muito forte. Enquanto isso, aos poucos, uma espécie de névoa brotava do centro daquele inesperado acontecimento e, por fim, tomara a forma de uma mulher, loura, bastande bonita mas de aspecto severo, com uma roupa preta que lembrava mais um biquíni. De capa.

Suas palavras foram tais, com tamanhas dureza, crueza e maldade, que evitarei expô-las aqui, na íntegra, com o objetivo de poupar o leitor, mas o seu teor era basicamente o seguinte: ela era ninguém mais, ninguém menos que Éris, a deusa grega da discórdia, e aquele porão lhe pertencia. Ele (o porão) não estava necessariamente no subterrâneo da casa de Floyd: habitava uma região imperscrutável do espaço-tempo e fixava-se ao alcance das pessoas que ela escolhia "ao acaso" para passar por determinados testes, no caso particular de Floyd, o da curiosidade. Mas a punição era sempre a mesma: como nosso "herói" não passara no teste - ele abriu o Livro Proibido, fato que deveria ter evitado, controlando seu lado imprudente - precisaria provar que era querido pelas pessoas que amava ou sumiria. Isso mesmo: Éris lhe pusera um feitiço que mediria a quantidade de carinho que ele recebia das pessoas ao seu redor e, se essa quantidade ficasse abaixo do que ela considerava aceitável, ele seria retirado da realidade à qual pertencia e ficaria preso durante um prazo indeterminado numa outra dimensão.

E então chegamos ao motivo da apreensão que Floyd passara a sentir no começo de nossa história. Ele tinha três meses para passar pela prova de Éris e, para tal, poderia se valer de quaisquer artifícios, com a exceção óbvia de revelar a alguém os segredos sobre a tarefa, Éris ou sobre o porão secreto. E mais: quanto mais ele alterasse a espontaneidade das pessoas (pedindo ou implorando para elas serem mais carinhosas com ele) mais aumentaria a "quantidade aceitável" a ser alcançada, ou seja, mais difícil se tornaria a prova. Portanto, ele deveria agir com muita cautela.

No início, Floyd resolveu não interferir de maneira muito grosseira na atitude das pessoas, apenas tratou de reaproximar-se delas, visto que há muito ele andava afastado de todos, não só pela descoberta do porão, mas também porque, antes disso, ele já havia se tornado um pouco fechado demais em si mesmo, numa espécie de arrogância contida, um tipo de egoísmo interno mascarado de altruísmo, possivelmente uma das razões para sua escolha "aleatória" por Éris. Esse fator tornou sua tentativa de reaproximação mais complicada do que ele esperava e o tempo se tornava cada vez mais escasso. Por isso, decidiu que deveria pedir mais carinho e atenção às duas pessoas que acreditava serem as que mais valiam o risco de aumentar a quantidade exigida pela deusa da discórdia - sua mãe e sua namorada - pois, ele acreditava, teriam muito amor e atenção a lhe oferecer caso ele lhes reclamasse sobre o descaso que vinha sentindo da parte delas, devidamente "computados" pelo feitiço "contador" que Éris tinha posto em seu corpo.

Com sua mãe, tudo saiu conforme ele imaginava: ela ouviu com atenção as reclamações que seu filho lhe fizera e mudou em relação a ele, tratando-o de maneira bem melhor. Floyd, finalmente, sentiu-se confiante de que poderia, sim, passar pela ingrata tarefa que lhe fora imposta. Mas suas esperanças se desvaneceram por completo ao fazer o mesmo com sua namorada: ela prontamente se irritou com a reclamação, porque acreditava que já dava todo o carinho e atenção que podia e era bom que Floyd se desse por satisfeito, hum! E o pobre Floyd, que esperava receber com sua salvadora tentativa a quantidade de amor necessária para provar àquela deusa maldita que era querido pelas pessoas que amava, viu acontecer totalmente o contrário: em vez de atenção, recebeu indiferença; avessamente ao carinho, viu a frieza tomar forma ainda mais concreta.

Depois desse acontecido, resignou-se. "Talvez", ele pensava, "eu realmente não seja muito querido pelas pessoas e mereça a punição reservada a mim". Com essa reflexão, apesar de um pouco taciturno, seu semblante denotava uma certa calma, como a de quem quer simplesmente aproveitar o restinho de tempo de que ainda dispõe, e passou seus últimos dias sem nenhuma outra tentativa de fazer com que pudesse "somar mais carinho" ao que já havia conseguido. No fim, desapareceu sem deixar vestígios, o que causou comoção geral entre seus conhecidos. Perguntavam-se se sua mudança de atitude nos últimos tempos não estaria definitivamente ligada ao seu desaparecimento e auto-avaliaram-se a respeito da forma que haviam procedido com Floyd.

Muitos arrependeram-se.