segunda-feira, 23 de abril de 2007

O Super-homem e o sentido da vida I

Do alto de um dos maiores arranha-céus de Metrópolis, o Super-Homem observava, taciturno, o sol se pondo no horizonte. Era um fim de tarde cinzento e nebuloso, tal qual o próprio estado de espírito do Homem de Aço. A fumaça das indústrias das regiões próximas, já bastante visíveis, confundiam-se com as belas e naturais nuvens do céu.

O Super-homem estava inconformado. Triste. Infeliz. Desestimulado. Nunca antes se sentira assim. Poucas horas antes, acabara de pôr fim em mais um dos sinistros planos de Lex Luthor, seu maior inimigo. Ironicamente, o mais fácil de ser derrotado com os punhos, mas invencível pelo que representava, o lado sórdido da alma humana, seu cruel desejo de sempre querer se afirmar acima dos outros, de ter Poder sobre tudo e todos, de ser o próprio Deus. Isso ficou bem claro no diálogo que eles trocaram no escritório de Luthor, antes da polícia chegar para levá-lo preso.

-Por que você faz isso? – Perguntara Lex, olhos cínicos fixados nos de seu captor. – Por que continua a me perseguir e a pôr fim nos meus planos, sempre e sempre, sabendo que eu nunca permanecerei preso mais que uns poucos meses e logo voltarei a arquitetar mais um plano para derrotá-lo e aumentar meu poder?

-Porque esse é o meu dever, Luthor. Eu devo incansavelmente combater o Mal e lutar pela justiça, defendendo aqueles que não têm condições de se defender. Pessoas como você são o que há de pior na humanidade e eu nunca vou deixar de combatê-los.

-Você é um idiota, Super-homem. Ainda não entendeu que sua luta é em vão? Essas pessoas que você tanto insiste em defender são iguais a mim, não sou mais cruel que elas. Eu apenas não me escondo atrás de falsas virtudes e hipocrisias sociais. Não preciso delas! Tenho Poder e, com ele, sou capaz de tudo! Qualquer pessoa em meu lugar agiria da mesma forma, pois o Homem não pode se controlar quando não há limites para suas ações. Ele é um escravo de si mesmo.

-Você se engana, Luthor. O Homem é naturalmente bom, mas as pressões da sociedade fazem com que ele perca aquela pureza inicial e acabe se tornando, às vezes, uma pessoa ruim, mas nada que não possa ser consertado. Nem todo homem se deixa levar pelo Poder. Eu nunca me deixei.

-Você, “Homem”?- ironizara Lex, rindo em seguida. – Você é qualquer coisa, menos Homem. Você pode voar, você é super-forte, tem visão de raio x. Você é tão humano quanto este prédio é vivo. Jamais poderá compreender a essência humana. A fragilidade do homem o conduz por um caminho que invariavelmente o torna um ser monstruoso, sempre a lutar contra os outros para se manter vivo. Não há bondade alguma nisso, apenas instinto de sobrevivência. Todos esses que você defende se voltariam contra sua pessoa caso você não fizesse o que lhes é conveniente. A sua pseudo-justiça é proteger os mais fracos sem se importar com o que lhes acontecerá no outro dia. Na verdade, você nunca muda nada, apenas satisfaz o seu super-ego, sabendo que as coisas são do jeito que você quer e não há quem lhe possa derrotar. No fim, você não é melhor nem do que eu.

-Em sua megalomania, Luthor, você já não sabe mais a diferença que há entre proteger as pessoas e buscar mais Poder? Posso não ser humano de fato, mas sou mais Homem do que você ousaria pensar em ser. Em minhas ações, eu me baseio não apenas em minhas próprias, mas no exemplo de muitas outras pessoas, que não hesitariam um instante antes de dar suas vidas em nome da justiça. E se há pessoas capazes de tal gesto, então não se apresse ao condicionar a essência humana a uma simples necessidade de se manter vivo a todo custo. E jamais compare as minhas atitudes com as suas. Eu luto em prol de um Bem Maior e, você, apenas por si mesmo.

-Tolo! Que Bem Maior é esse pelo qual você luta? Enquanto você se diverte nessa sua fantasia ridícula e brinca de esconde-esconde com bandidos como eu, o mundo inteiro vai se deteriorando. Todos os valores morais e éticos há muito já não valem mais nada, só há uma eterna busca por poder e dinheiro, aliás, como sempre foi! E não adianta jogar todo o peso dessas acusações apenas em cima de mim. Já faz tempo que o planeta foi loteado entre as grandes corporações, os novos dinossauros. É em torno das disputas entre estas que o mundo de hoje vai sendo moldado, tanto social quanto fisicamente, trazendo todos os malefícios ecológicos que com certeza você já sabe, mas que nada faz para evitar. A Luthorcorp apenas não foge da realidade e busca se consolidar nos valores da sociedade vigente. Se eu não lutar por mim, quem lutará? Você? Você já está muito ocupado, lutando contra a História. Admita, Super: você está ultrapassado. O mundo e os homens estão condenados desde os primórdios. A pergunta que fica é: o que vai ser de você depois que nós nos formos? Quem é você, Super-Homem?

Foram estas últimas palavras de Lex Luthor que levaram o nosso herói ao atual estado em que se encontrava. Ele tinha perdido as esperanças. Realmente, nunca havia parado para pensar sobre sua identidade, não dessa forma. Desde o começo, quando descobria, pouco a pouco, seus poderes, ele se indagara sobre o porquê deles. Mas nunca se perguntou sobre o seu próprio porquê: quem era ele? Quem era aquele ser com uma roupa azul e uma capa vermelha, que alternava sua identidade com um simpático e desengonçado jornalista do Planeta Diário? E mais: estaria seu destino moldado como o de todos os homens, ou, pelo fato de ele ser de outra raça, um kriptoniano, ele pertencia a outra linha de destino? O que o aguardava depois da morte? O que era a própria morte? Haveria um Deus que o estaria observando em todos os momentos, afim de lhe julgar quando se esvaísse sua vida? Se assim fosse, qual o motivo de tudo aquilo? Qual o motivo das guerras, das batalhas sem fim, do ciclo de ódio que se perpetuava em todas as vidas?

Ele sentia que, sem responder a esses questionamentos, não poderia continuar. Todas as suas ações seriam em vão enquanto ele não respondesse a principal pergunta: afinal, qual o sentido da vida?

Sentado no topo do maior arranha-céu de Metrópolis, o Super-Homem chegara a uma conclusão. Se o Universo o convidava a descobrir seus segredos, ele não hesitaria em seguir até seus confins, até o fim do Espaço e do Tempo, com o intuito de desvendar as respostas.

terça-feira, 10 de abril de 2007

Os engravatados e suas maravilhosas histórias

Ah, esses engravatados... O que se pode dizer? Que eles são desonestos, mesquinhos, corruptos e mentirosos, não é permitido, pois aí não seria original. Sem contar a ínfima minoria dentre eles - e põe ínfima nisso - que podem usufruir da alcunha 'honesto' e que seriam desrespeitados com a generalização. Esses engravatados... Pelo menos, eles são elegantes. Elegantes e inteligentes. E com essa elegância e inteligência, vão conseguindo ludibriar a maior parte dos brasileiros.

Há pouco mais de um mês, um crime brutal chocou a opinião pública: o caso do menino João Hélio, arrastado por um carro durante sete quilômetros preso ao cinto de segurança do automóvel - pendurado do lado de fora. Os ladrões que cometeram o hediondo crime, dois jovens, um de dezoito, o outro, de dezesseis, logo foram execrados pela sociedade - com razão - e logo surgiu o debate: o que propicia o surgimento de tais atitudes e como evitar que elas voltem a acontecer? Os engravatados rapidamente arranjaram uma resposta: ora, era óbvio que a culpa de tudo isso era a falta de punição e a alta (?) idade penal. As soluções, portanto, seriam baixar a idade penal de 18 para 16 anos e aumentar o cerco aos jovens marginais das favelas. Ninguém discutiu que talvez, num caso como esse, os culpados imediatos sem dúvida eram os rapazes, mas que, num contexto geral de culpa, não há uma só pessoa isenta de julgamento. Ninguém discutiu que, talvez, a resposta para a barbaridade do ocorrido tivesse a ver com a origem dos rapazes, uma favela, locais reconhecidamente miseráveis e violentos, palco de atividades ilícitas, entre as quais o tráfico de drogas e a prostituição, resultados de toda má administração pública, da vista grossa dos governantes, de todos os péssimos avanços sociais e de igualdade social. Ninguém pensou que a psiquê atormentada e desumana dos criminosos tivesse alguma ligação com o preconceito que eles com certeza vinham sofrendo desde a infância, do descaso das autoridades para com seus cruéis destinos, da falta de oportunidades geradas por um Estado controlador, corrupto e hipócrita. Não... Os engravatados não tocaram nesses assuntos, apenas prosseguiram com o seu ritual de esquivas e mascaramento das verdades.

Ah, esses engravatados... A sociedade chiou depois desse crime e eles tiveram que tomar medidas drásticas. Tiveram que tomar as rédeas da situação. Os jovens criminosos foram prontamente capturados e tratados da forma desumana que "merecem" assassinos como eles. Serão julgados e condenados - ou já foram, sei lá - e tudo voltará a ser como antes. Talvez pior. Pelo menos, é o que faz parecer a nova lei de crimes hediondos, que permite que os autores de tais crimes tenham direito a liberdade provisória antes e durante o julgamento, dependendo do aval do juíz. Se tivéssemos um judiciário perfeito, uma decisão como essa poderia ser encarada como uma vitória da democracia e do Direito. Como se sabe, o nosso sistema judiciário também está nas mãos dos engravatados, então essa lei se efetivará apenas contra a banda de cá.

No que diz respeito às bandas de lá, a impunidade será a mesma, como foi o caso da morte do índio pataxó Galdino, que completará 10 anos no dia 20 deste mês. O incidente, ocorrido em Brasília, anda fora das manchetes, mas é fácil de ser lembrado: afinal, quem esqueceria o episódio no qual cinco jovens bem-nascidos, entre eles, um menor, jogaram óleo diesel e, em seguida, atearam fogo ao índio que dormia no banco de uma parada de ônibus? Ninguém, óbvio. Mas, com a condescendência da mídia, o caso foi abafado. O crime, notadamente hediondo, no mínimo, doloso, foi tachado apenas como lesão corporal seguida de morte e os jovens, à época, receberam uma pena branda. Hoje, estão cumprindo-a em liberdade.

Afinal, são filhos de engravatados e futuros engravatados. E, como é de praxe no Brasil, eles sempre riem por último. De nós, das leis e de prazer, sem pudor. Além de elegantes e inteligentes, bem-humorados. Sem-vergonhas, porém, gentleman's . Impecáveis.

domingo, 8 de abril de 2007

O menino e a chuva

O menino veio correndo assim que começou a ouvir aquele barulhinho gostoso e contínuo, que vinha acompanhado do não menos delicioso cheirinho de terra molhada. Correu, muito rápido, quase tropeçando no vaso favorito de sua mãe. Era a chuva, era ela! Com aquele seu descolorido fantástico, riscando a realidade como um lápis. Ele mal pôde acreditar, como estava grossa! Era a sua chuva favorita, daquelas que até doem um pouquinho as costas, como se as gotas trouxessem pequenas agulhinhas dentro delas.

Em poucos instantes, o menino já estava todo ensopado, parecendo roupa que acaba de sair da lavanderia. Ah, se sua mãe lhe visse agora, com certeza lhe daria uns bons cascudos, afinal, ele estava usando uma de suas roupas novas. Mas não tinha problema, depois pensaria nisso. Agora, ele só queria aproveitar a maravilha daqueles instantes. Sentir a água escorrer pelo seu rosto e lhe lavar a face. Correr, como que sem rumo, sentindo a pressão do vento lhe comprimindo as ventas, tal qual um cachorrinho desses vira-latas, sem dono, sem destino, sem medo. Tudo o que era mundo era agora uma realidade distante, sem qualquer parentesco com aquela felicidade vadia e molhada da chuva, de riso simples e despreocupado, fácil como somar um mais um.

Sempre que chovia, o menino gostava de ir a um lugar secreto, só seu, lá detrás da casa que ficava ao lado do terreno baldio. Tinha um tronco que servia como um banquinho e uma espécie de bica, onde a água descia como uma cascata. Como a água era forte e gelada! Às vezes, vinha um sei-lá-quê de essência fria por dentro da cachoeirinha, que ele até sentia um arrepio subir-lhe por toda a espinha. E ele ficava lá, parado, deixando a água abraçar-lhe o corpo e tomar a forma do seu ser, com o tempo parecendo parar, como se só houvesse ele e aquele momento no universo.

Sem aviso e indo sabe lá onde, a chuva começava a esmorecer, sem perder ainda a maior parte de sua potência, mas já deixando os sinais que anunciavam que, dentro em breve, partiria pra outro local. Nessas horas, o menino sentia uma espécie de tristeza passageira, como quem sabe que sua fonte de prazer lhe será roubada. Era comum, quando sentia isso, que ele sentasse no tronco que parecia um banquinho e ficasse sentado ali, observando a paisagem banhada, até que rareassem as gotas. Como tudo era tão mais bonito molhado! Quer dizer, nem mais bonito, mas um bonito diferente, como uma mão que tirasse o véu que escondia a verdadeira forma por detrás das coisas. Tudo parecia tão real! Mais natural do que qualquer outra naturalidade. De vez em quando, seu olhar se deixava levar junto à correnteza de um desses alegres riozinhos que se formam com a água abundante que cai dos céus. Não raro, ele se imaginava bem pequeno, proporcional ao arroiozinho, a desbravar aquelas águas com um de seus barquinhos, em busca dos segredos do mundo das pequenas coisas. Uma fantasia que sempre o deliciava, não apenas pela aventura em si, mas também porque deixaria aquele mundo sem sentido pra trás, com seus pais sempre ausentes, mais preocupados com o que os outros pensavam do que com ele, com crianças sem infância que disputavam por qualquer coisa no colégio, como adultos ocultos em corpinhos infantis, gente grande precoce; mundo de pessoas apressadas, sem tempo pra um sorriso, pra uma brincadeira, pra qualquer contato mais íntimo com a eterna beleza do aqui e agora. Seus pensamentos nem sempre eram tão profundos assim, porém, no seu âmago, ele sentia aquelas palavras mais intensamente do que qualquer poeta ou filósofo, mesmo sem se dar conta.

No fim, a chuva não era mais que pequenas teias de aranha líquidas enroscando-se em sua pele e o sol já era uma bola amarela no céu. Cansado, o menino vinha caminhando sem pressa pra casa, contemplando a realidade, que parecia despertar de um sono, ou simplesmente retornado do lugar onde tinha ido se abrigar da chuva. As pessoas o olhavam com um misto de curiosidade e desprezo, como se o simples fato de estar encharcado o transformasse num mendigo ou num vagabundo qualquer. Ele nem ligava. Às vezes, até achava engraçado. Queria poder dizer pra aquela gente que elas não precisavam ser tão sérias, que, sim!, era permitido fazer coisas estranhas vez ou outra , que a felicidade pode estar mais perto do que se imagina e que nada impedia que a vida fosse diferente daquela mostrada todos os dias nos noticiários e jornais. Não exatamente desse jeito, mas algo assim. Mas sabia que só receberia olhares de reprovação e um bom sermão sobre a dura realidade, como sua mãe sempre fazia.

Um dia, ele pensava, iria tentar mostrar pra todos que o seu mundo ideal não era apenas faz-de-conta e faria o possível pra que todos pudessem ser felizes, como ele achava que devia ser desde o começo. Mas isso, quando fosse maior. Por enquanto, ele apenas esperaria pela próxima chuva, trazendo de volta aquela sensação de liberdade e plenitude que, naqueles breves momentos, brotava do fundo de sua alma.