domingo, 25 de maio de 2008

Eu sou Você

– Eh... Com licença...

– Pois não?

– Eu queria te dizer uma coisa... Posso?

– Que coisa?

– Uma coisa.

– Hm... Pode, pode sim. O que é?

– Bom, eu sei que é meio estranho te dizer isso...

– Não, não, pode falar. Agora eu fiquei curioso.

– Tem certeza?

– Não foi você que disse que queria falar? Então: agora fala.

– É verdade... Bom, então lá vai...

– Sim?

– Eu sou Você.

– O quê?

– Eu sou Você.

– Você sou eu? Como assim?

– Ora, é isso mesmo que você ouviu: eu sou você, você sou eu.

– Eu não sou você.

– Claro que é. Nós estamos sendo escritos pela mesma Pessoa.

– Como assim, “escritos”?

– Há Alguém escrevendo o que estamos falando.

– Você é doido...

– Então você também é doido. Nós somos doidos.

– Ai, ai, é cada uma que me aparece... Olha só, é o seguinte: eu vou te dar uma chance de provar que o que você ta falando é verdade.

– Tudo bem, provarei. Começo lhe fazendo uma simples pergunta: onde você estava antes?

– Antes?

– É, antes. Antes de eu falar com você.

– Eu estava ali.

– “Ali”, onde?

– Ora... Ali!

– Você está me enrolando. Você não sabe onde estava!

– Claro que sei.

– Onde?

– Ta bom. Suponhamos que você esteja certo e eu não saiba onde estava. O que isso prova?

– Prova que você não sabe onde estava porque só começou a existir assim que Ele começou a escrever.

– “Ele”, quem?

– Ele. O Autor.

– Você é louco...

– Não sou louco. Pense um pouco: você está aqui agora conversando comigo e não tem a menor idéia de onde estava antes. De repente, eu o chamei e nós iniciamos este diálogo. Que é na verdade um monólogo. Do Autor.

– Você está me deixando confuso...

– Desculpe. Mas é a verdade.

– Será?... Como você pode ter certeza?

– Através da intuição e do raciocínio. Veja, vamos continuar com a prova: onde você está agora?

– Agora...? Eu... Eu... Eu não sei!

– Está vendo? Você nem sabe onde está agora mesmo. Mas não se desespere, ainda há mais uma perguntinha a ser feita, pra finalizar: quem é você?

– Ah, meu Deus... Eu também não sei! O que é isso? Como posso não saber todas essas coisas?! Como posso não saber de onde eu vim, onde estou e quem eu sou? É impossível!

– Não é impossível. Está acontecendo agora.

– VOCÊ QUER ME DEIXAR MALUCO? É ISSO?

– Não, sinto muito... Minha intenção era simplesmente alertá-lo sobre estas coisas e dizer que nós somos a mesma Pessoa.

– Tudo bem, me desculpe... Eu me exaltei. Mas é que é tão difícil... Eu nunca poderia imaginar...

– Eu sei, eu sei... Também passei por isso.

– Hm... Me fale mais sobre o Autor.

– Não sei muito sobre Ele. Apenas que Ele está nos escrevendo.

– Ele está nos escrevendo mesmo agora? Neste instante?

– Sim. Cada palavra.

– Fascinante... Como Ele faz isso?

– Bom, parece que antigamente Ele usava uns instrumentos divinos chamados Caneta, ou Lápis, ou Pena, e Papel. Escrevia com o Lápis (ou a Caneta ou a Pena) no Papel. Mas, hoje em dia, acredito que estejamos sendo digitados.

– “Digitados”?

– Isso. Escritos por um Teclado, no Computador.

– Quer dizer que estamos, agora, no Computador?

– É o que eu acredito.

– O que é um Computador?

– Isso eu ainda não sei.

– Minha nossa... Tudo isso é muito novo pra mim, nem sei o que pensar.

– Pois é...

– Mas, vem cá, você não disse que eu sou você?

– Sim, porque estamos sendo escritos pela mesma Pessoa.

– Então nós somos o Autor?

– Não. O Autor é nós dois ao mesmo tempo, mas nós não somos o Autor. Ele é e pode ser qualquer coisa que quiser. Basta Ele escrever.

– Mas por que Ele quis ser, escrever, sei lá, nós? Pensando bem, por que Ele escreve?

– Você tocou o cerne da questão. Acho que isso nunca saberemos ao certo. Só podemos fazer suposições, enquanto não chega o Fim do Texto.

– “Fim do Texto”?

– É. Quando Ele pára de escrever.

– E Ele pára de escrever?

– Sim. Eventualmente.

– E o que acontece conosco?

– Não sei.

– Como, você não sabe? Você sabe tantas coisas e não sabe o mais importante?

– Na verdade, acho que foi o contrário: mostrei que não sabemos nada.

– Não entendo...

– Você parece que já assimilou algumas coisas, mas ainda não compreendeu o essencial. Eu sou Você. Eu passei a existir na mesma hora em que você, talvez um pouco antes, mas somente quando o Autor começou a escrever. Não faço a menor idéia de por que eu sei algumas coisas e não sei outras, eu simplesmente sei. Porque Ele quis! O motivo d’Ele o querer, eu não sei.

– Mas isso já é demais... Estou a ponto de enlouquecer...! Já não bastava não conhecermos nossa origem ou quem somos nós ou nem sabermos onde estamos, já que nada adianta sabermos que estamos no Computador e não sabermos o que é o Computador; ainda temos que conviver com o fato de que uma hora chegaremos ao Fim do Texto e nem sabemos pra onde vamos depois!!!

– E nem o porquê de tudo isso.

– Exato! Nem isso! Saber que a qualquer instante o Texto pode acabar e que estas podem ser minhas últimas Palavras... E se minhas últimas Palavras forem sem sentido, sem nexo, um amontoado de pensamentos inúteis ao fim de um diálogo sem motivo, que começou ao acaso, um...

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Velho medo

Pense um pouco: se você visse uma criança sofrendo maus-tratos nas mãos de um de seus pais, você se perguntaria se aquele pai realmente teria condições de cuidar da criança, não? Num ímpeto mesmo, poderia querer arrancá-la das garras do inconseqüente pai ou da desnaturada mãe, certo de que este não tinha mais direito de cuidar do filho. E ainda que você fosse insensível a ponto de reagir com indiferença a uma visão destas, jamais o poderia fazer o Estado: como determina o Estatuto da Criança e do Adolescente, “é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”. Partindo desse princípio, o Estado não só não permaneceria alheio ao incidente como poderia até destituir a guarda da criança.

Pensado isto, é possível fazer a seguinte analogia: o governo brasileiro, em certa medida, é como se fosse uma espécie de “pai”, de “tutor” de todas as instâncias as quais fica a seu cargo administrar, desde a vida de seus cidadãos até as eventuais necessidades dos Estados; sem dúvida, nessa lista, entraria também o zelo por regiões de grande interesse estratégico e ambiental, como a Amazônia, a maior e mais importante floresta equatorial do mundo, tratada com tanto descaso pelas nossas autoridades. Ou seja: em nossa discutível analogia, o governo brasileiro seria como um pai indiferente e cruel que, se não maltrata, permite que outros continuamente maltratem sua filha Amazônia, à vista de todos. E, também nesta situação, há quem pense que este continental pai não mais deveria prosseguir como tutor incondicional de sua filha...

Também pudera. Deixando a alegoria inicial de lado, a Amazônia é um território de suma importância mundial, não apenas pela sua imensurável diversidade animal e vegetal ou por suas encantadoras belezas naturais, mas também porque pode esconder em sua fauna segredos que poderão ser muito úteis para a humanidade – entre vários outros fatores, claro – , e o Brasil, país que contém dentro de seus limites geográficos 60% da floresta amazônica, vem miseravelmente falhando em conter o avanço do desmatamento e da poluição na região, pondo em risco este ecossistema de valor inestimável para os brasileiros e, principalmente, para o planeta Terra. Por isso, seria muita ingenuidade nossa acreditar que as nações que mandam no mundo – o G-8 – permanecerão de braços cruzados enquanto observam-nos destruir a Amazônia e todas as suas possibilidades. Se o ritmo de desflorestamento continuar aumentando nessa velocidade, é quase garantida uma invasão estrangeira, por mais que os verdadeiros motivos por trás de uma ação dessas fossem outros, mais mesquinhos e abjetos: insistindo na destruição, estaríamos dando o pretexto que faltava para estas ambiciosas nações finalmente pusessem as mãos nas cobiçadas riquezas amazônicas.

E é até possível que a temida invasão se torne realidade mais cedo que imaginamos, e nem precisamos recorrer ao fato de que a quantidade de ONG's estrangeiras atuando na região já pode ser considerada uma invasão: recentemente o New York Times indagou “inocentemente” a quem pertence a Amazônia e disse que "ao contrário do que os brasileiros acreditam, a Amazônia não é propriedade deles, ela pertence a todos nós". Em resposta, o novo ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, declarou que "Quem faz uma proposta dessas deveria passar por uma requalificação psicológica, tal o disparate que contém. Os donos (da Amazônia) somos nós", numa tentativa de encerrar uma discussão que só tende a ficar cada vez mais complicada nos próximos anos, em virtude de uma necessidade cada vez maior de recursos energéticos e por conta da crescente discussão em torno dos efeitos do aquecimento global e da poluição no clima mundial.

Num cenário como esse, não é de todo estranha a notícia de agressão sofrida por um engenheiro da Eletrobrás por um grupo de índios caiapós, durante o encontro que discute a possível construção da hidrelétrica de Belo Monte no rio Xingu, afluente do glorioso Amazonas. Talvez seja mesmo uma imagem de teor emblemático. Paulo Fernando Rezende, o engenheiro, que defendia a instalação da hidrelétrica, foi atacado com golpes de facão e espancado pelos índios, uma atitude que deve ser execrada, jamais vista como algo louvável. Mas não se pode permitir que ela seja utilizada como uma tentativa de desmerecer o ponto de vista defendido pelos caiapós, apenas uma das diversas etnias indígenas que vivem às margens do Xingu e que teriam que ser deslocadas do lugar em que vivem a gerações para que a tal hidrelétrica fosse produzida. Hidrelétrica esta que, ao contrário do que diz o governo, não está sendo construída para benefício da população brasileira, muito menos da paraense, visa apenas fornecer energia para as empresas mineradoras da região, que poluem e saqueiam o meio ambiente no qual estão inseridas sem que sequer tragam qualquer compensação econômica para a região ou melhoria na qualidade de vida do povo do Pará.

A mídia, sempre tendenciosa, omite as questões mais importantes, implicitamente defendendo a construção da hidrelétrica, sem ligar para todos os problemas que ela irá gerar, a despeito do pouco que contribuirá para o país. É possível que, mais uma vez, ela esteja defendendo interesses escusos, provavelmente estrangeiros, participando ativamente da filosofia de vida que rege a maior parte da elite brasileira, que é a de vender o país em troca de um lucro insensato e inconseqüente, entregando nossas riquezas de mão beijada a qualquer um. E nós aqui, correndo o risco de ver o velho medo de que a Amazônia seja controlada por outros países tornar-se uma triste realidade.

Impotentes.

domingo, 18 de maio de 2008

O paranóico

Encontraram-no escondido num matagal em meio a arbustos e palhas, enroscado em cipós e urzes, com arranhões e cortes diversos espalhados pelo corpo. Seu olhar denunciava um desequilíbrio mental proeminente e, enquanto era arrastado dali pelos homens da clínica de “repouso”, gritava histericamente o motivo de sua permanência naquele esconderijo:

– Me larguem, ele está aqui! O Predador está aqui, está me seguindo!

É preciso que dois fatos sejam ressaltados antes de prosseguir com a narrativa: em primeiro lugar, sim, o ‘Predador’ a que Vincent se referia era realmente o guerreiro extraterrestre fictício dos filmes O Predador, aquele com cabelos em forma de dreadlocks, mandíbula parecida com a de um caranguejo e cara de poucos amigos; em segundo, não era a primeira vez que ele era acometido daquele surto paranóico que o levava a buscar refúgio em lugares insólitos, pensando que havia alguém ou alguma criatura à espreita, perseguindo-o.

Nunca se soube ao certo como aquele problema psíquico se iniciara. A mãe dele, D. Lucy, punha a culpa nas drogas. Meses depois que descobrira que seu filho fumava maconha e sabe Deus o que mais, fora surpreendida pelo primeiro contato que teve com a doença de Vincent, quando este passou mais de dez horas trancafiado em seu quarto com medo de um assassino que – Vincent tinha certeza – estava oculto na vizinhança, esperando um vacilo de sua parte para matá-lo. Foi preciso que seu Josh, o pai, arrombasse a porta do quarto do filho para tirá-lo de lá.

Durante alguns dias, chegara-se mesmo a acreditar que poderia haver um bandido ou um criminoso qualquer tentando de fato matar Vincent, talvez em decorrência de um desentendimento com traficantes ou algo do tipo. Mas como a polícia jamais encontrara vestígios de um assassino em potencial nas redondezas, nem o rapaz parecia dar alguma indicação verossímil para a existência de tal personagem, a hipótese de pura fantasia mental ganhara força e terminara por sobrepor-se a qualquer outra possibilidade quando, semanas após a primeira manifestação crítica da paranóia persecutória, ele tivera um novo ataque, dessa vez fugindo em disparada da praça onde passeava com sua mãe, alegando que o assassino encontrava-se em algum dos prédios que os cercavam e de lá apontava uma sniper direto para sua cabeça. Ele até vira o laser vermelho da mira da arma em certo momento.

Assustada e sem saber o que fazer para ajudar o filho, D. Lucy pedira conselhos a amigas e estas lhe indicaram a clínica psiquiátrica do Dr. Leary, um eminente especialista em casos como aquele, bastante competente e discreto. Ela o procurara e, poucos dias após este encontro, Vincent estava sob a tutela do referido doutor, no Instituto de Recuperação Psíquica, que ficava um pouco afastado da cidade, um lugar agradável e cercado por uma paisagem natural bem convidativa. Vincent não ficara muito satisfeito com a decisão dos pais a princípio, mas com o tempo, por sentir uma segurança reforçada na clínica, achou de muito bom grado sua estadia por lá, conseguindo finalmente relaxar um pouco mais suas neuroses.

Durante dois meses, tudo correra muito bem. Afastado da influência negativa da cidade e das drogas ilícitas, com auxílio da medicação prescrita pelo Dr. Leary e das próprias sessões terapêuticas diárias com o mesmo, Vincent aparentava uma melhora visível, já tendo consciência de que sofria de um distúrbio conhecido como ‘paranóia’, que desencadeava por vezes delírios de grandeza ou, como no caso dele, de perseguição – e que, portanto, não havia nenhum assassino de verdade perseguindo-o, era tudo fruto de sua imaginação. Por isso, já não tinha medo de caminhar sozinho por entre as trilhas ao redor do instituto, nem de ficar desprotegido em lugares abertos e o Dr. Leary já dava como certa sua alta em poucos dias.

Mas esta certeza fora por água abaixo numa noite fria e chuvosa, véspera da saída de Vincent da clínica. Dr. Leary fora acordado às pressas pelas enfermeiras, que lhe informaram que o paciente 013 (Vincent, claro) arrombara a porta de sua alcova e desembestara numa fuga alucinada pelos corredores, e só fora contido por seis enfermeiros agindo em conjunto, que lhe aplicaram um sedativo e o puseram numa camisa-de-força, deixando-o em seguida na enfermaria, desacordado. Mais tarde, ao interrogar o rapaz, Dr. Leary descobrira o motivo do novo surto: Vincent tinha certeza de que, da janela de sua cela, avistara o ser mais pavoroso que já vira em toda sua vida: um Predador. Ele disse que ficara intrigado com alguma coisa ao lado de uma árvore, num lugar onde parecia não haver nada, mas que tinha “um certo movimento estranho”; de repente, o “lugar estranho” se transformou na horripilante criatura, por poucos instantes, mas o suficiente para Vincent compreender que o que ele vira era na verdade um Predador, o alienígena dos filmes, e que estava se utilizando de sua tecnologia de invisibilidade para surpreender Vincent em seu catre, quando este estivesse dormindo – mas o Predador provavelmente não contava que seu aparato da invisibilidade pudesse falhar justamente no instante em que Vincent, intrigado, observava-o. Achando que a sorte lhe dera uma oportunidade de se salvar, ele não pensara duas vezes e encetara a mal-sucedida fuga.

Dr. Leary ficara extremamente desapontado com aquela recaída às vésperas da cura total e também não pudera acreditar que, apesar de tudo que haviam conversado anteriormente, Vincent recusava-se a admitir que aquela visão não passara de uma nova modalidade de paranóia, dessa vez com uma acentuada dose de esquizofrenia – o que muito preocupava o pobre doutor. Mas ele nada pudera fazer para impedir que aqueles episódios voltassem a ocorrer, até mesmo com uma freqüência regular, apesar do aumento da medicação e da vigilância em torno de Vincent, o que nos traz ao fato que iniciou a história, quando ele conseguiu escapar da clínica e se embrenhou na mata, à guisa de se esconder da criatura.

Depois desse episódio, o Dr. Leary decidiu utilizar sua carta na manga mais poderosa, e talvez a última: a regressão. Através da terapia das vidas passadas – que aprendera com um excêntrico e misterioso psiquiatra hindu –, ele pretendia investigar as origens secretas daquele trauma e, com ajuda deste conhecimento, expurgar definitivamente da mente de Vincent aquelas paranóias deletérias. E, por incrível que pareça, deu certo: em pouco tempo, embora Vincent estivesse antes num estado quase perdido, ele começou a se recuperar de uma maneira inacreditável, recobrando a lucidez e o controle dos pensamentos, pouco a pouco, novamente a par da mesma certeza que havia conquistado no início de seu tratamento e perdido após o “aparecimento” dos Predadores, que era a de saber que tudo aquilo era uma construção ilusória provocada por sua mente e que as criaturas, óbvio, não poderiam ser reais, eram fictícias personagens de Cinema. Ele até mesmo se espantava com o fato de ter ficado por tanto tempo à mercê desses absurdos, o que fazia Dr. Leary se perguntar por que não usara aquele método desde o princípio, chegando a pôr a saúde mental do paciente em risco por conta de uma avaliação errônea de procedimento.

Seu Josh e D. Lucy não cabiam em si de felicidade ao receberem Vincent em casa novamente após quase dez meses de tratamento. Como era o filho único do casal, eles passaram todo esse tempo vivendo um inferno particular, com medo de perderem o filho para sempre. Portanto, festejaram bastante seu retorno e o fizeram prometer que não entraria mais para o mundo das drogas nem faria mais nada que pudesse pôr em risco sua sanidade mental. Vincent fez como os pais pediram e disse que dali pra frente daria um novo rumo a sua vida, que acessos como aquele só se tornaram possíveis porque as drogas perturbaram sua mente a tal ponto que ele não pudera mais distinguir o real do imaginário e que, com a ajuda do Dr. Leary, ele se fortalecera de modo a não mais se deixar levar por paranóias infundadas.

E as coisas sucederam conforme Vincent prometera aos pais durante alguns meses, até o fatídico dia em que um homem encapuzado surpreendera-o quando voltava da faculdade numa rua escura e, após pronunciar uma única palavra (“Finalmente!”), apunhalara-lhe na direção do coração, um golpe certeiro, enquanto Vincent caía, já agonizando e com a vista escurecendo, perguntando-se se aquilo era real ou apenas uma paranóia um pouco mais elaborada.

O assassino ficara ao lado de Vincent até que este já não esboçasse mais nenhuma reação, e já ia se retirar, quando de súbito materializou-se um Predador a sua frente, que o cortou em dois com uma pequena serra circular que trazia em seu antebraço, antes de se retirar para as trevas de onde surgira.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Uma máscara que cai

Há uma crônica do Luis Fernando Veríssimo, esse grande escritor e cronista brasileiro, cujo título é Racismo, onde ele, de maneira primorosa, faz um retrato fiel e bem-humorado (do tipo “rir pra não chorar”) da situação do negro no Brasil, através de um diálogo entre um homem branco e outro negro. Conversa vai, conversa vem, e o homem branco da crônica faz a declaração chave sobre o racismo brasileiro:

– E digo mais. É por isso que não existe racismo no Brasil. Porque aqui o negro conhece o lugar dele.

Não se choque com a afirmação. Não é verdade? No nosso país, onde o discurso demagógico e hipócrita da sociedade proclama aos quatro cantos que “aqui não há racismo”, a realidade é que só não há um conflito maior entre brancos e negros justamente porque a doutrina oficial de congraçamento racial – arbitrariamente forjada pela experiência de quatro séculos de escravidão – desdenha de qualquer inconformidade por parte das vítimas e não permite que as desigualdades gritantes e a discriminação velada sejam discutidas de maneira adequada e proporcional ao problema. Como explica Milton Santos, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, “Aqui, o fato de que o trabalho do negro tenha sido, desde os inícios da história econômica, essencial à manutenção do bem-estar das classes dominantes, deu-lhe um papel central na gestação e perpetuação de uma ética conservadora e desigualitária”. Ou seja: como é o negro que desde sempre sustenta os hábitos nada solidários da elite brasileira através de sua exploração secular, vamos fingir que nada está acontecendo; assim, nada precisará mudar. Oba!

Brincadeira à parte, basta lembrarmos de toda polêmica que se criou em torno das cotas para negros nas universidades públicas e teremos uma pequena amostra do tipo de preconceito racial que há no Brasil. Muito se falou, muito se debateu, algumas universidades adotaram o sistema de cotas, outras não, algumas autoridades criticaram, outras aplaudiram, mas o fato é que, de uma perspectiva mais ampla, nada vai mudar de verdade. Porque o problema não é o modo de seleção das universidades; não é o vestibular que é exclusivo: é todo o sistema! Enquanto não for oferecida uma educação de base de qualidade à população mais pobre (constituída por 70% de negros) para que eles possam competir de igual pra igual com seus concorrentes ricos (em sua maioria, brancos), de nada adiantará, isoladamente, distribuir vagas das faculdades públicas aos negros como se fosse uma esmola que se dá a um indigente na rua. Esse tipo de determinação apenas torna mais visíveis as frágeis relações sociais que regem o funcionamento da sociedade brasileira, opondo de maneira mais aberta os interesses raciais diversos e despertando o adormecido monstro do racismo.

Além disso, há mais, muito mais... Para não me perder em incontáveis exemplos sórdidos de discriminação ou em tortuosas e eternas estatísticas evidenciadoras, fico somente com a seguinte, que cabe para ambas as situações: ano passado, o Índice de Desenvolvimento Humano, ou IDH, medido pela ONU, revelou de forma embasada numericamente a discrepante distância que há entre o “Brasil Branco” e o “Brasil Negro”. Embora tenham sido constatadas melhoras em ambos os “Brasis”, eles afastaram-se ainda mais na classificação mundial. O “‘Brasil Branco’, em 1991, ocupava a 65ª ou 66ª posição entre as nações mais desenvolvidas no aspecto social; em 2000, chegou à 44ª posição. Já o ‘Brasil negro’, que em 1991 estava na 101ª ou 102ª posição, caiu em 2000 para a 104ª ou 105ª. A diferença entre os dois "países" passou de 36 para 60 posições no ranking do IDH em apenas 10 anos”. Quer dizer: só um cego (leia-se aqui: ignorante) pra não ver que o nosso queridíssimo país é, sim, uma nação rigorosamente racista e hipócrita, que consente a opressão e a segregação racial pois é conveniente a sua parcela branca e detentora do poder a postergação da exploração da população negra para o continuísmo dos privilégios dessa mesma classe exploradora e para a manutenção desse mesmo poder mesquinho.

Enfim. Eis aqui as tristes reflexões e constatações vergonhosas que faço de maneira tão simplória um dia após o Brasil “comemorar” 120 anos de abolição da escravatura.

*para maiores informações:
Ser negro no Brasil hoje;
Desigualdades;
120 anos da Lei Áurea.

domingo, 11 de maio de 2008

Isoldete

Depois de quatro anos, sete meses e doze dias de enrolação, desconversas e adiamentos, ao invés de finalmente pedir a Isoldete em casamento, o que o Zé Carlos fez foi, como um bom canalha, pôr fim ao namoro de tão longa data – fato que, diga-se de passagem, não deixou a Isoldete lá muito satisfeita. Ela, que andava animada desde que o Zé Carlos havia conseguido a promoção tão esperada no emprego – e que, nos últimos tempos, era a desculpa utilizada para não assumir um compromisso mais formal – mal pôde se controlar a tempo antes de arremessar no canalha toda a louça que via pela frente – e, mesmo assim, ainda causou um prejuízo considerável.

Também a família da namorada abandonada mal acreditava no atrevimento do Zé Carlos. Ao saber do ocorrido, o pai, que cansou de jogar porrinha e beber aquela pinga com o genro durante os jogos do campeonato carioca, ameaçou ele próprio matar aquele cafajeste, e teria mesmo cumprido sua determinação, não fosse uma artrose que mal permitia que levantasse de sua poltrona; a mãe, coitada, que já via como que encaminhada a filha mais velha, já com seus vinte e sete anos, na idade de casar, desmaiou e precisou ser levada às pressas ao Socorrão – e, depois que acordou, ficava com as mãos levantadas pro céu, clamando “Me leva, meu Pai, me leva!”.

Em meio a toda essa algazarra, a única mais lúcida era a Lucineide, irmã mais nova da Isoldete. Ela, que esteve ao lado da irmã durante toda a fase crítica de sofrimento e indignação, que a impediu de fazer qualquer besteira mais irreparável e que, apesar de ser a mais nova, era quem mais dava bons conselhos à irmã mais velha, foi quem surgiu com a proposta que, passada a raiva, mais agradou à desolada Isoldete, e que lhe trouxe também uma certa esperança.

– Vamos pedir ajuda à Mãe Titina.

Mãe Titina era uma mãe-de-santo conhecida da família que tinha um terreiro de umbanda lá pras bandas da Vila Maranhão, nos arredores do Porto do Itaqui. Tinha ficado amiga da mãe delas numa época em que ainda eram garotas, e sabiam que, de alguma forma desconhecida, tinha ajudado muito a família. A idéia de Lucineide era pedir à Mãe Titina um forte despacho que fizesse com que Zé Carlos voltasse atrás na sua decisão e reatasse o namoro com Isoldete, pedindo-a em casamento logo em seguida. Isoldete, após refletir pouquíssimos segundos, aceitou a idéia da irmã. Mas acharam melhor não dizer nada a ninguém, preferindo agir na surdina, sem despertar suspeitas.

Alguns dias após tomarem a decisão de visitar Mãe Titina, ao anoitecer, foram juntas ao encontro da mãe-de-santo. Já na Vila Maranhão, não tiveram muito problema em encontrar o terreiro, visto que fizeram uma meticulosa pesquisa nos dias que antecederam a empreitada. Como também já tinham marcado uma “consulta” com a própria, não demorou muito que estivessem em sua presença.

Mãe Titina tratou-as como uma tia trataria as sobrinhas. Sempre muito solícita, ouviu atenciosamente tudo o que Isoldete tinha a contar, e até mesmo passou a mão nos cabelos desta quando, a intervalos regulares, caía no choro, ainda abalada. E dizia: “Calma, minha filha, calma”, num tom que expressava algo do tipo “tudo vai ser resolvido”. E foi justamente isso o que ela afirmou ao final da entrevista, após dizer às duas o que precisavam fazer.

Feliz, antevendo a eficácia das palavras e das ordens de Mãe Titina, Isoldete passou uma semana atarefada, indo atrás de todos os ingredientes do despacho receitado. Tudo isso, claro, era feito às escondidas, apesar das constantes indagações de sua mãe, sempre muito viva, notando a insuspeita alegria do olhar de Isoldete, que se saía com frases do tipo “Não é nada, mãe, não posso mais sorrir?”, o que só deixava sua mãe mais curiosa. Lucineide também ajudou na medida do possível, apesar da advertência de Mãe Titina, que disse que só quem estava pretendendo pedir ajuda aos orixás era quem devia fazer os preparativos do despacho.

Após tudo pronto – galinha preta, cachaça, comida de Exu, alguidares com sangue de sei-lá-quê – , numa madrugada particularmente bela e iluminada por uma lua cheia muito parecida com que a sacerdotisa advertiu-as que daria mais poder ao despacho, elas saíram de casa pé-ante-pé, em busca de uma encruzilhada. Encontraram num lugar não muito afastado a encruzilhada perfeita para o pretendido, isolada e sombria, onde dificilmente chamariam atenções indevidas. Cumpriram os rituais umbandistas relacionados ao desejo de Isoldete e voltaram pra casa, bastante esperançosas de que tudo sairia dentro dos conformes e que, em breve, Isoldete estaria de véu e grinalda trocando alianças com seu “prícipe encantado” Zé Carlos.

Passadas quase duas semanas, as irmãs retornaram ao terreiro de Mãe Titina. Isoldete encontrava-se bastante aturdida, debilitada e, nas palavras de sua mãe, “um caco”. Contaram à Mãe Titina que tinham feito tudo de acordo com os desígnios desta, mas qual não foi a surpresa de ambas ao ficarem sabendo que Zé Carlos, poucos dias depois de realizado o despacho, estava morando com outra mulher. Ainda esperaram um tempo para ver se os efeitos desejados não estavam apenas um pouco atrasados, mas só tinham notícia de que o novo relacionamento dele estava indo de vento em popa, e então resolveram voltar.

Mãe Titina ouviu tudo com uma fleuma admirável. Ficou algum tempo em silêncio, meditando, provavelmente buscando o motivo do fracasso daquele pedido de auxílio divino. Quando o silêncio já se prolongava por um tempo constrangedor, Mãe Titina pediu desculpas a Isoldete e disse que não previra a real dificuldade do pedido. Passou-lhes um novo despacho, maior e mais pormenorizado e garantiu-lhes que em no máximo três meses Zé Carlos estaria na Igreja casando com Isoldete, ou ela não se chamava Mãe Titina. Nem que para isso tivesse que falar com Exu pessoalmente.

Incrivelmente, exatos três meses depois, numa festa que deu o que falar, diante de uma quantidade de convidados invejável, uma esfuziante e sorridente Isoldete dizia “Sim” a um suarento Zé Carlos, perante o padre que realizou o casamento de ambos, que teve Lucineide como madrinha e Mãe Titina como convidada de honra. A mãe delas estava imensamente grata a Mãe Titina pelo que havia feito por sua filha – claro, a esta altura do campeonato, aquela já estava a par de tudo – e fez questão de dar uma ajuda financeira bem maior à amiga que o estipulado pelas filhas, o que Mãe Titina recusou veementemente, alegando que era apenas uma intermediária entre os orixás e os fiéis e que elas deveriam mesmo era agradecer a Exu, não a ela.

(Faltou dizer que, quando dizia “Exu”, Mãe Titina referia-se na verdade a um negão de quase dois metros de comprimento e tórax que rivalizaria com o de gorilas, que era seu secreto guarda-costas pessoal, a quem ela pedia “auxílio” sempre que algum despacho em especial não saía conforme o previsto, como no caso do infausto Zé Carlos – que, depois da "visita de Exu", apareceu chorando à casa de Isoldete, com um buquê de rosas nas mãos, implorando que esta voltasse com ele.)

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Um alerta

Há, no Universo Marvel (universo onde se passam as aventuras em quadrinhos dos personagens da Marvel Comics), no coração do Pólo Norte, um lugar chamado de Terra Selvagem, onde – sabe-se lá como – o gelo preservou e deixou imaculado pelo Homem toda uma extensão de floresta tropical nos moldes jurássicos. Isso mesmo, com homens-das-cavernas, dinossauros e outras feras pré-históricas.

Pois bem. Numa história do Homem-Aranha que eu li há muito tempo atrás, meu querido herói enfrentava uma ameaça incomum. Uma certa empresa, controlada pelos piores canalhas possíveis, estava aumentando artificialmente as temperaturas do Ártico com fins de derreter as geleiras e, dessa maneira, inundar a Terra Selvagem para poder lucrar com a exploração petrolífera que se iniciaria minutos após a inundação. Claro, no fim das contas, o nosso amigo aracnídeo, com o auxílio de tribos nativas e outros heróis, pôs fim aos planos maquiavélicos da corja de empresários vilanescos e tanto o Pólo Norte quanto a Terra Selvagem puderam respirar em paz.

Tudo isto contado acima poderia passar simplesmente por encheção de saco bloguística (que neologismo absurdo, hein?) se não fosse pela incrível capacidade da vida de, muitas das vezes, imitar a arte. Nesse caso, não nos presenteando com uma biodiversidade pré-histórica e inexplicável, mas sim com o derretimento das geleiras árticas como uma maneira de lucrar com a exploração de suas riquezas minerais.

Não, não é invenção minha, por mais inescrupuloso que possa parecer. Coloque no google a expressão “exploração do ártico” e você verá a enxurrada de páginas que irão aparecer denunciando essa perfidez, essa desumanidade hedionda, esse descaso criminoso em relação ao nosso planeta. Um deles, o Rastro de Carbono, adverte que “ao invés de se preocuparem em conter as emissões de gases do efeito estufa em suas nações, os governantes estão mais interessados nos lucros que o aquecimento global pode trazer”, um declaração que faz brotar, pelo menos em mim, uma insatisfação e uma revolta tão profunda e pungente que não pode ser descrita através de palavras.

O teor do que está acontecendo é mais ou menos o seguinte: o recuo das geleiras árticas devido ao aquecimento global está tornando possível que os recursos naturais da região norte-polar, que permaneceram todos estes anos à margem da destruição ambiental provocada pela industrialização do mundo capitalista por conta do clima inóspito, possam finalmente ser explorados pelos gananciosos governos dos países que as circundam – daí a preocupação do site citado acima. Ao invés de se preocuparem com os males indiscutíveis causados pelo efeito estufa e dedicarem seus esforços para conter seu avanço, eles estão muito mais interessados nas enormes possibilidades econômicas que se abrirão caso a região possa vir a ser explorada, ansiosos em fazer dinheiro em detrimento do meio ambiente. E essa ânsia em pôr as mãos no “ouro ártico” desencadeou, ainda por cima, uma acirrada disputa pelo controle das áreas exploráveis, onde cada um reclama para si uma parte maior do bolo: a Noruega deu a largada, iniciando as atividades da primeira instalação de exploração e processamento de gás natural e petróleo construída no Ártico, fora do Alasca; a Rússia, ainda tímida, “apenas” aprofundou o acirramento das discussões numa simbólica declaração de soberania, ao fincar uma bandeira sua no Pólo Norte; os Estados Unidos, logo atrás, já cogitam a construção de uma base operacional na região, para controlar a já expressiva frota naval que atravessa o oceano ártico em virtude do esvaecimento das geleiras oceânicas.

Esquecem-se estas inconseqüentes e obtusas nações que o Ártico pertence, primeira e unicamente, às espécies que lá vivem e à biodiversidade da região, e não a interesseiros e abjetos invasores vizinhos; que de nada vale a busca desenfreada por riquezas se isso for feito às custas da saúde da Terra, pois sem ela não temos e não somos nada; e que brincar levianamente com a Natureza nunca deixou de ser punido de maneira arrasadora e catastrófica. Pelo bem do nosso planeta – e, conseqüentemente, também nosso – , é preciso que façamos alguma coisa contra este tipo de atitude egoísta o quanto antes, já que não temos homens-aranhas ou quaisquer outros super-heróis para lutar contra estes esquivos inimigos e salvar o mundo de suas mesquinhas intenções em nosso lugar, ainda em tempo de evitar que este precedente injustificável e ignominioso possa servir de exemplo para outros estúpidos ataques ao meio-ambiente em prol de simples lucro, e que vêm tornando a degradação ambiental algo cada vez mais irreversível.

As futuras gerações, sem dúvida, agradeceriam.

*para maiores informações:
A exploração do Ártico;
O Ártico em perigo;
Ouro sob o gelo.

domingo, 4 de maio de 2008

Uma certa Ílion

Assistindo à Tróia, filme épico de 2004 que, óbvio, almeja ser a versão cinematográfica da famosa obra literária homônima (mas que deriva de outro nome para Tróia e, por isso, chama-se Ilíada), não tem como a gente não se emocionar. Mesmo para algumas pessoas que, como eu, são excessivamente puristas e sentem uma agulhada no peito a cada cena acrescentada pelo diretor ou a cada alteração da história para satisfazer os valores hollywoodianos, ainda assim, em vários momentos, sentimo-nos invadir pela deliciosa comoção de “presenciar” os feitos lendários e míticos que marcam a narrativa da guerra de Tróia.

E que narrativa... Composto de 15693 versos distribuídos arbitrária e irregularmente em 24 cantos, o poema gira em torno do herói grego Aquiles, semi-deus filho do humano Peleu e da ninfa Tétis, e de seu trágico destino, amarrado definitivamente ao desfecho da trágica guerra. Envolta numa efervescente gama de sentimentos opostos e recheada por atitudes tanto perversas quanto grandiosas, sua trajetória particular dá mote a outras inúmeras tramas e histórias paralelas, desde a participação do panteão grego no decorrer do conflito – e, diga-se de passagem, também em sua origem, pois foi por causa de uma malfadada disputa de beleza entre Athena, Juno e Afrodite, engendrada pela ardilosa deusa da discórdia, Éris, que o rapto de Helena (motivo da guerra) se tornou possível – , às agruras de outros heróis, de ambas as partes, presentes na disputa, como Ajax, Ulisses – que é o personagem principal de outro épico, ligado à Ilíada, A Odisséia – Páris, Heitor, entre outros.

Até hoje, há uma acirrada polêmica sobre quem seria(m) o(s) autor(es) deste poema épico, tido como a obra inaugural da literatura ocidental. Acredita-se que tenha sido composto por “um velho cantor, pobre e cego que, peregrinando de terra em terra, recompensava a quem o agasalhava com a declamação de seus poemas”, de nome Homero, e que teria vivido no séc. VIII a.C. Mas ele tanto poderia ter sido tão somente o compilador das diversas rapsódias quanto poderia nem mesmo ter existido. Também há a possibilidade de que ele tenha sido o autor de um poema inicial, ao qual, com o passar dos anos, foram sendo acrescentados novos versos, novos cantos, por desconhecidos poetas. (Enfim, o assunto é realmente polêmico e não me atreverei a ir além de uma exposição superficial de suas questões principais.)

Mas esta dúvida irrelevante não interfere de maneira alguma no caráter totalmente excepcional da obra, que atravessou séculos e séculos e chega hoje até nós com o mesmo impacto emocional que encantou e influenciou gerações de poetas, escritores e outros artistas ou simples e embevecidos leitores. Além, é claro, de sua importância didática e instrutiva, pois ambas as obras, A Ilíada e A Odisséia, são as principais fontes do período da história grega denominado, não por coincidência, de Período Homérico, revelando interessantes aspectos sociais, culturais e religiosos da época em que foram escritas, além de conterem uma vasta quantidade de dados e pormenores geográficos e indicações bastante verossímeis dos modelos de conduta e valores da sociedade homérica, inclusive encarnando em várias personagens o ideal heróico grego, tais como: o valor do altruísmo; o sacrifício pessoal em nome da honra; o patriotismo; a amizade sincera, etc. Platão considerava Homero o “educador da Grécia, no mais pleno sentido” e, em sua República, criticou de maneira ostensiva a exposição das fraquezas humanas (egoísmo, ódio desmedido, paixões, inveja, orgulho) como algo natural, não apenas personificadas nos heróis, mas principalmente porque até mesmo os deuses se rendiam a essas fraquezas. E se até mesmo os deuses não podiam fugir a elas, como poderíamos nós, tolos e ridículos mortais?

Discussões históricas e filosóficas à parte, é o seu valor literário e a beleza das situações enfrentadas por Aquiles e cia. o que mais me interessam e impressionam. Não vou contar aqui todos os trechos que me deixam boquiaberto, pois aí esta crônica vulgar, já desnecessariamente extensa, ultrapassaria a quantidade de laudas suportadas até mesmo pelo leitor mais dedicado. Mas não posso deixar de registrar minha sincera indignação com o atroz destino de Heitor, príncipe troiano, valoroso guerreiro, marido e pai dedicado, filho exemplar e cumpridor de todas as tarefas e obrigações perante sua pátria. Não consigo descrever com outra palavra que não seja ‘sacanagem’ o que foi feito dele: teve que enfrentar cara a cara a fúria de Aquiles – pois Heitor matara sem querer o melhor e mais amado amigo de Aquiles, Pátroclo, pensando que fosse o próprio Aquiles, levando este a dirigir toda sua vingança ao azarado assassino de seu fiel companheiro – , em conseqüência de uma guerra que só havia começado porque seu irmãozinho Páris seqüestrara a mulher de outro homem. Claro, esta luta é um dos clímaxes tanto do poema quanto do filme e ambos não seriam o mesmo sem ela, mas que foi uma baita sacanagem, ah, foi.

Outra parte muito boa e que envolve novamente as duas personagens é quando Aquiles, arrependido, chora debruçado sobre o cadáver de Heitor, desculpando-se com ele por tê-lo desrespeitado e o tratado como a um animal, arrastando-o amarrado a sua carruagem. E diz: “Desculpe-me, irmão. Em breve, nós estaremos juntos.”, numa alusão ao fato de que pressentia a morte já próxima, talvez como castigo.

Belíssimo.