O Universo, que engraçado, às vezes tem dessas coisas. De tanto seguir esse fluxo tão aparentemente imutável e sério, o seu âmago amalucado e tendendo para o absurdo acaba por se revelar, não raro, quando menos se esperava e de maneira incondicionalmente aparatosa. O sujeito passa a vida inteira observando-o de uma forma e, de repente, de um minuto para o outro, tudo pode mudar; sem que se saiba como ou por que, o cosmo nos surpreende, irremediavelmente.
Veja você o que aconteceu com o Paulo. Numa dessas manhãs meio lentas demais, dessas que parecem nunca se afastar muito das onze horas, trazendo à tona um ar modorrento e apático que só a visão do almoço próximo consegue suavizar um pouco, Paulo encontrava-se esparramado numa das cadeiras do terraço de sua casa, sozinho, fingindo que lia alguma notícia num jornal de dias atrás enquanto torcia secretamente que uma brisa fugidia viesse apaziguar o calor quase sufocante, quando o Extraordinário, subitamente, bateu a sua porta - ou melhor, a sua perna. Era o seu cachorro, o Pêite (sabe como é, Paulo tentou lhe dar a alcunha de Black Dog, mas nem esse nem outro nome pegou, até que um de seus amigos, certo dia, fazendo uma brincadeira com o termo ‘carrapato’, gritou “Fala, Carrapêite!”, causando gargalhada geral e, sem querer, batizando o cão com esse nome, que mais tarde derivou para “Pêite”), que havia apoiado as patas dianteiras em suas coxas e pedia inconfundivelmente uma rodada de carinhos. Meio sem dar muita atenção e sem tirar os olhos do jornal – agora ele tinha se interessado por alguma informação noticiada, algo a ver com OVNI’s – Paulo principiara a usual série de movimentos rítmicos atrás da orelha de seu animal de estimação, quando ouviu, em alto e bom tom, uma voz muito próxima, que disse:
– Muito obrigado, Paulo.
Ele, que estava distraído lendo a notícia ufológica, tanto se assustou que amassou o jornal quase todo ao se endireitar rapidamente à cadeira, à procura da possível fonte da voz sorrateira. Após vasculhar tenazmente todo o ambiente ao redor e chegar à conclusão de que não havia indícios que pudessem sugerir alguma presença oculta – bom, pelo menos, viva – seus olhos detiveram-se no semblante plácido e abobalhado de Pêite, que lhe retribuía o olhar, e Paulo cogitou por segundos que a voz misteriosa - que tinha um quê masculino, apesar de meio pueril – pudesse ter se originado daquela figura engraçada e familiar, e sua fronte desanuviou-se ligeiramente com a comicidade despertada por aquele pensamento, milésimos de segundos antes de descartar a fugaz hipótese e uns poucos milésimos a mais antes de aturdir-se por completo ao observar Pêite dizer, como que respondendo a sua feição inquiridora:
– Sim, Paulo, fui eu mesmo quem falou.
Paulo mal teve tempo de esboçar um fragoroso “Ãhn?!” e já estava no meio de uma espécie de sermão canino, onde Pêite tratara logo de explicar o que estava acontecendo. Contara-lhe que os cães – ora, os cães – há muito tempo que sabiam falar, e que não apenas eles, mas boa parte da fauna terrestre, considerada irracional pelos homens – que Pêite chamou de “ingênuos” – há muito haviam desenvolvido sua comunicação, e num grau tão amplo que eles (os animais) até tinham criado um tipo de organização oculta, que secretamente guiava os rumos do mundo, deixando o ser humano na sua ilusória condição de criatura dominante para que ele, por orgulho, não se aprofundasse nos segredos da Natureza.
– Mas, se são vocês que controlam tudo, por que deixaram a humanidade causar o desequilíbrio ambiental que pode acabar por erradicar a vida na Terra? – Perguntou-lhe Paulo, numa forçada descrença a tudo que ouvira até agora, talvez para tentar ganhar tempo enquanto esperava aquele óbvio delírio passar, ou para escamotear, em vão, o embaraço e a confusão na qual todo seu ser estava imerso naquele momento.
– Isso não é da minha alçada – respondeu-lhe gentilmente Pêite, com sua vozinha que lembrava a de um pokémon, contrastando com sua eloqüência e seriedade. – Mas, quando você diz “toda a vida na Terra”, acredito que esteja se referindo apenas aos da sua espécie. Ou você acha que nós, os verdadeiros animais racionais, não saberíamos nos adaptar às novas transformações?
– Pode até ser... Mas e quanto aos animais extintos ou em ameaça de extinção, hein? Por que então eles estão morrendo?
– Eles não estão morrendo. Apenas estão sendo transferidos a localidades as quais vocês não têm acesso.
Depois, respondendo a outra pergunta de Paulo, Pêite lhe revelou que havia pedido permissão à secreta organização dos animais para poder agradecer pessoalmente – pra não dizer, “caninamente” – a seu dono por todos esses anos de bons tratos e de um carinho fenomenal, pois sua técnica de afagar repetidamente atrás da orelha de Pêite não tinha par na história paralela dos cães.
– E também para que eu tenha outro nome. Nunca gostei muito de Pêite. Quero ser chamado de Garrincha.
– Garrincha?! – Consternou-se Paulo, não entendendo. – Por quê?
– Uma homenagem a um humano que admiro muito.
Após o ocorrido, Pêite nunca mais voltara a falar. Continuou a ser o mesmo cãozinho de olhar simpático e aparvalhado de sempre, correndo atrás das visitas e deixando o tapete da sala constantemente encharcado. Paulo, que até o fim da vida, passou a ter um respeito visível por todo e qualquer animal com que entrara em contato desde então, mesmo sem buscar comprovar as revelações de seu cachorro – às vezes, até duvidando de que aquilo tinha realmente acontecido – , não deixou de brincar com este, apesar de uma ansiedade desmedida nascer em seu peito sempre que se encontravam a sós, e nem alterou de forma muito drástica sua relação com Pêite, ou melhor, Garrincha. Essa, aliás, foi a única mudança realmente significativa após o episódio e ninguém entendeu porque Paulo passara a chamar Pêite, de uma hora para a outra, de Garrincha, provocando gargalhadas e incompreensão em todos, mas que sumiram com o tempo.
O novo nome, a propósito, pegou.