domingo, 30 de março de 2008

O cachorro

O Universo, que engraçado, às vezes tem dessas coisas. De tanto seguir esse fluxo tão aparentemente imutável e sério, o seu âmago amalucado e tendendo para o absurdo acaba por se revelar, não raro, quando menos se esperava e de maneira incondicionalmente aparatosa. O sujeito passa a vida inteira observando-o de uma forma e, de repente, de um minuto para o outro, tudo pode mudar; sem que se saiba como ou por que, o cosmo nos surpreende, irremediavelmente.

Veja você o que aconteceu com o Paulo. Numa dessas manhãs meio lentas demais, dessas que parecem nunca se afastar muito das onze horas, trazendo à tona um ar modorrento e apático que só a visão do almoço próximo consegue suavizar um pouco, Paulo encontrava-se esparramado numa das cadeiras do terraço de sua casa, sozinho, fingindo que lia alguma notícia num jornal de dias atrás enquanto torcia secretamente que uma brisa fugidia viesse apaziguar o calor quase sufocante, quando o Extraordinário, subitamente, bateu a sua porta - ou melhor, a sua perna. Era o seu cachorro, o Pêite (sabe como é, Paulo tentou lhe dar a alcunha de Black Dog, mas nem esse nem outro nome pegou, até que um de seus amigos, certo dia, fazendo uma brincadeira com o termo ‘carrapato’, gritou “Fala, Carrapêite!”, causando gargalhada geral e, sem querer, batizando o cão com esse nome, que mais tarde derivou para “Pêite”), que havia apoiado as patas dianteiras em suas coxas e pedia inconfundivelmente uma rodada de carinhos. Meio sem dar muita atenção e sem tirar os olhos do jornal – agora ele tinha se interessado por alguma informação noticiada, algo a ver com OVNI’s – Paulo principiara a usual série de movimentos rítmicos atrás da orelha de seu animal de estimação, quando ouviu, em alto e bom tom, uma voz muito próxima, que disse:

– Muito obrigado, Paulo.

Ele, que estava distraído lendo a notícia ufológica, tanto se assustou que amassou o jornal quase todo ao se endireitar rapidamente à cadeira, à procura da possível fonte da voz sorrateira. Após vasculhar tenazmente todo o ambiente ao redor e chegar à conclusão de que não havia indícios que pudessem sugerir alguma presença oculta – bom, pelo menos, viva – seus olhos detiveram-se no semblante plácido e abobalhado de Pêite, que lhe retribuía o olhar, e Paulo cogitou por segundos que a voz misteriosa - que tinha um quê masculino, apesar de meio pueril – pudesse ter se originado daquela figura engraçada e familiar, e sua fronte desanuviou-se ligeiramente com a comicidade despertada por aquele pensamento, milésimos de segundos antes de descartar a fugaz hipótese e uns poucos milésimos a mais antes de aturdir-se por completo ao observar Pêite dizer, como que respondendo a sua feição inquiridora:

– Sim, Paulo, fui eu mesmo quem falou.

Paulo mal teve tempo de esboçar um fragoroso “Ãhn?!” e já estava no meio de uma espécie de sermão canino, onde Pêite tratara logo de explicar o que estava acontecendo. Contara-lhe que os cães – ora, os cães – há muito tempo que sabiam falar, e que não apenas eles, mas boa parte da fauna terrestre, considerada irracional pelos homens – que Pêite chamou de “ingênuos” – há muito haviam desenvolvido sua comunicação, e num grau tão amplo que eles (os animais) até tinham criado um tipo de organização oculta, que secretamente guiava os rumos do mundo, deixando o ser humano na sua ilusória condição de criatura dominante para que ele, por orgulho, não se aprofundasse nos segredos da Natureza.

– Mas, se são vocês que controlam tudo, por que deixaram a humanidade causar o desequilíbrio ambiental que pode acabar por erradicar a vida na Terra? – Perguntou-lhe Paulo, numa forçada descrença a tudo que ouvira até agora, talvez para tentar ganhar tempo enquanto esperava aquele óbvio delírio passar, ou para escamotear, em vão, o embaraço e a confusão na qual todo seu ser estava imerso naquele momento.

– Isso não é da minha alçada – respondeu-lhe gentilmente Pêite, com sua vozinha que lembrava a de um pokémon, contrastando com sua eloqüência e seriedade. – Mas, quando você diz “toda a vida na Terra”, acredito que esteja se referindo apenas aos da sua espécie. Ou você acha que nós, os verdadeiros animais racionais, não saberíamos nos adaptar às novas transformações?

– Pode até ser... Mas e quanto aos animais extintos ou em ameaça de extinção, hein? Por que então eles estão morrendo?

– Eles não estão morrendo. Apenas estão sendo transferidos a localidades as quais vocês não têm acesso.

Depois, respondendo a outra pergunta de Paulo, Pêite lhe revelou que havia pedido permissão à secreta organização dos animais para poder agradecer pessoalmente – pra não dizer, “caninamente” – a seu dono por todos esses anos de bons tratos e de um carinho fenomenal, pois sua técnica de afagar repetidamente atrás da orelha de Pêite não tinha par na história paralela dos cães.

– E também para que eu tenha outro nome. Nunca gostei muito de Pêite. Quero ser chamado de Garrincha.

– Garrincha?! – Consternou-se Paulo, não entendendo. – Por quê?

– Uma homenagem a um humano que admiro muito.

Após o ocorrido, Pêite nunca mais voltara a falar. Continuou a ser o mesmo cãozinho de olhar simpático e aparvalhado de sempre, correndo atrás das visitas e deixando o tapete da sala constantemente encharcado. Paulo, que até o fim da vida, passou a ter um respeito visível por todo e qualquer animal com que entrara em contato desde então, mesmo sem buscar comprovar as revelações de seu cachorro – às vezes, até duvidando de que aquilo tinha realmente acontecido – , não deixou de brincar com este, apesar de uma ansiedade desmedida nascer em seu peito sempre que se encontravam a sós, e nem alterou de forma muito drástica sua relação com Pêite, ou melhor, Garrincha. Essa, aliás, foi a única mudança realmente significativa após o episódio e ninguém entendeu porque Paulo passara a chamar Pêite, de uma hora para a outra, de Garrincha, provocando gargalhadas e incompreensão em todos, mas que sumiram com o tempo.

O novo nome, a propósito, pegou.

quarta-feira, 26 de março de 2008

Sambas e touradas

Parece encaminhar-se de volta à normalidade a situação diplomática entre Brasil e Espanha, após denúncias de maus-tratos e discriminação feitas por dois estudantes brasileiros barrados em território espanhol e repatriados em seguida, que desencadeou uma espécie de tensão velada entre ambos os países. As denúncias tiveram ainda maior impacto pois chamaram a atenção para a considerável freqüência com que tais cenas têm-se repetido, não apenas na Espanha, mas também em vários outros países europeus e nos Estados Unidos.

Não é de hoje que o problema da xenofobia, principalmente na Europa, gera esse tipo de discussão, de polêmica. A questão dos imigrantes ilegais, geralmente provenientes de países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, permanece como uma constante nos temas discutidos dentro desses países (os desenvolvidos, claro), seja num desses cafés esnobes que abundam por lá, seja nas disputas eleitorais, notadamente as atuais (Sarkozy, na França, foi um dos que se elegeram com promessas de apertar o cerco aos estrangeiros ilegais). Não que essa persistência tenha sido por falta de cara feia européia: há muito tempo que nossos “amigos” colonizadores recebem-nos com mensagens do tipo “Venham apreciar as belezas que nos tornam infinitamente superiores a vocês, deixem seu rico dinheirinho conosco e caiam fora” - que, nas últimas décadas, vem sendo bastante utilizada também pelos estadunidenses - e que nós, brasileiros e sul-americanos em geral, ou fingimos não entender ou não levamos muito a sério.

É evidente que são muito raros os que apreciam que seu lar seja tomado por invasores de outras terras. Portanto, em certa medida, esse tipo de atitude por parte dos europeus e dos norte-americanos é até compreensível, não totalmente desprovido de argumentos. Mas as motivações por trás de tais ingressos sem convites podem dizer se, de fato, é justa a expulsão dos “invasores”, uma vez que é também evidente que não são muitos os que abandonam seu próprio lar para tentar a sorte em terras estranhas por um simples capricho. Por exemplo: se você põe fogo ou destrói a casa do seu vizinho, só com muita cara de pau reclamará se ele decidir armar uma barraca no seu quintal. E foi algo precisamente análogo a esta alegoria o que, de fato, sucedeu e vem sucedendo há um período já desmesuradamente extenso: não só a América Latina, mas também a África e a Ásia, de tão abjetamente exploradas pelos imperialismos de todos os tempos e de tão desumanamente viradas de ponta-cabeça por uma série de manipulações políticas e econômicas – quando não, por decisivas e sangrentas intervenções militares, tanto direta quanto indiretamente – viram-se, em virtude de todas essas tragédias impostas, vitimadas por grande parte das desgraças sociais que teimam em destituir a maioria das nações desses continentes de quaisquer chances relativas a uma verdadeira entrada no chamado Primeiro Mundo; expostos aos piores males que acometem a humanidade a milênios e que, por conta de toda essa indústria do mais-do-mesmo, insistem em se perpetuar nas populações destes infelizes países, seus cidadãos não vêem outra saída que não seja arrumarem as trouxas para tentar a sorte na casa de seus carrascos.

Um dos estudantes citados no começo desta crônica, Pedro Lima, que, junto com Patrícia Rangel, também deportada, ia para um Congresso em Lisboa e apenas fazia escala em Madri, sentindo seus direitos ameaçados após se ver durante várias horas detido e confinado numa sala de poucos metros quadrados, sem água e luz escassa, com muitos outros brasileiros e também com venezuelanos e africanos, decidiu reclamar com um dos policiais da imigração que os vigiavam na saleta. Disse-lhe que não, aquilo não estava certo, que eles estavam se sentindo humilhados, que estavam sendo tratados como cachorros.

- Mas vocês são cachorros – respondeu-lhe prontamente o policial.

Engraçado é saber que este policial é descendente dos mesmos espanhóis que, em meados do século XVI - e durante os subseqüentes séculos – invadiram o continente, à época, recentemente descoberto e batizado de América, e foram, juntamente com os portugueses, responsáveis por um dos maiores massacres de etnias já registrados na história, matando milhões e milhões de nativos pré-colombianos, coincidentemente, antepassados de muitos dos cidadãos que, como Pedro Lima, continuam a ser periodicamente humilhados e mal-tratados ao tentar obter um mísero retorno do todo que lhes foi vilipendiado já há muito tempo antes de nascerem.