quarta-feira, 30 de abril de 2008

Uma história irreal

O indivíduo era pobre, daqueles que o substantivo implorava de pés juntos pelo complemento ‘lascado’. Quase um mendigo. Não que ele não fosse trabalhador, muito pelo contrário. Mas seus Senhores, que o observavam naquele exato momento de uma bancada superior, exploravam-no em demasia já há algum tempo, e sem nenhum escrúpulo. Claro, os dotes físicos do indivíduo eram bastante evidentes e atrativos, sem contar algumas habilidades manuais latentes, o pendor para o bom-humor, a memória fraca e o intelecto adormecido - esta última uma qualidade imprescindível - , o que fazia d'O indivíduo um escravo perfeito. (Embora ninguém nunca se referisse a ele daquela maneira, com um termo tão “direto e forte”, como diziam, quanto aquele.)

Estava sendo julgado. Sem dinheiro para quitar as dívidas, como sempre. Parece que, quanto mais trabalhava, menos dinheiro tinha, era incrível. O salário que recebia mal dava para a subsistência da família, imensa, e ainda tinha aquela quantidade de impostos! O indivíduo nem sabia o que eram esses impostos, nem o porquê deles, mas os Senhores pegavam a grana de qualquer forma. E, naquela corda bamba de salário e dívida, sempre chegava uma hora em que O indivíduo ou tinha que alimentar sua família ou pagava as eternas dívidas. E, quando punha a família em primeiro lugar, invariavelmente vinha o julgamento.

Tentava se defender. Geralmente, os mesmos argumentos de sempre: “Vocês podiam aumentar meu salário”; “E daquela vez que eu achei um tesouro em minhas terras e vocês o roubaram?”; “Vocês não têm alma?”. E as respostas também se repetiam: “Não”, “Não lembramos”, “Não”. A ladainha dos Senhores se esmerava a cada julgamento, numa tautologia sobrenatural: era o velho e batido sermão sobre “nós lhe demos tudo que você tem”, “como você faria pra se virar sem a gente?” e “nós sempre lhe damos presentes de Natal”, com algumas poucas variações, mas com a elegância de costume. O indivíduo não tinha outra saída a não ser baixar a cabeça e concordar com tudo, resignadamente. Era isso ou enfrentar os cachorros.

Mas daquela vez, era diferente. A dívida, que já vinha se acumulando há algum tempo, chegou a níveis exorbitantes. E o indivíduo ainda teve a audácia de pedir para não pagar. Queria dar o calote! Sem dúvida, um ultraje. Era um ultraje tão ultrajante que os Senhores ficaram assustados. Os outros indivíduos poderiam seguir aquele desastrado exemplo. Onde aquela ousadia iria parar? E se ninguém mais quisesse pagar suas dívidas e se rebelassem? Era melhor tentar uma nova abordagem. Quem sabe seduzir O indivíduo com falsas promessas de crescimento? Melhorar-lhe um pouco as condições, para que ele pensasse que conquistara, no mínimo, um certo respeito por parte dos Senhores, e também para que pudesse se impor em relação aos outros indivíduos, exibindo seus “privilégios” e mostrando como era “especial”. Assim, O indivíduo talvez nunca nem reparasse na sua escravidão implícita e nunca mais atrasaria os pagamentos.

Chamaram-no para um canto e lhe disseram que não iam perdoar a dívida, que ele teria que pagar de qualquer jeito, mas lhe dariam uma ajuda. Era só ele fazer exatamente o que os Senhores mandassem, sem nunca questionar.

E assim foi feito.

*** *** *** ***

Muito tempo depois, O indivíduo volta. Vinte e um anos depois, mais precisamente. Estava sorridente e elegante. Não tanto quanto seus Senhores, claro, mas bem vestido. Também mais forte e mais corado, esbanjando até uma confiança exagerada - que os Senhores sabiam, descabida. Exalava um ar de pureza perdida, de corrupção interna. Certamente não era o mesmo de vinte e um anos atrás.

Depois da última visita, há mais de duas décadas, O indivíduo nunca mais esteve diante deles. Saiu-se muito bem com o auxílio dos Senhores. E, por isso mesmo, estes não entendiam o motivo daquela inesperada visita. O indivíduo não estava satisfeito?

- Estou, estou sim; satisfeitíssimo. Nunca minha vida foi melhor. Nossa casa agora, embora a mesma de sempre, foi reformada e pintada. Bom, pelo menos a fachada e alguns quartos. Os Senhores sabem, tive muitos, muitos filhos, muito mais do que os Senhores, somados todos, e nem sempre é possível agradar a todos. A maioria. Mas não me queixo. Escolhi alguns filhos, uns poucos privilegiados, e dei tudo do bom e do melhor pra eles, quase tanto quanto os Senhores deram para os seus próprios filhos. E assim sigo contente.

- Então, qual a razão da visita?

- É que alguns dos meus filhos, muito mal-educados, os Senhores me desculpem, ficam falando um monte de bobagens. Andam dizendo que eu sou explorado, desde sempre, que vocês me usam para seus próprios fins sem me dar o que eu mereço de verdade, que vocês me mantém à rédea curta. Chegaram até a dizer, os Senhores me desculpem mais uma vez, que eu não passo de um escravo.

- Blasfêmia! – Irritaram-se os Senhores. – Como ousam?? Nós não já demos provas mais do que suficientes de que isso não é verdade? Em todos esse anos, quantas melhoras não lhe proporcionamos? Além disso, não já publicamos vários documentos demonstrando essa melhora? Ano passado, mostramos a todos que na sua casa já se come e vive melhor, mesmo que seja para poucos. E, recentemente, os pusemos na nossa listinha de privilegiados absolutos! O que mais vocês querem?

-Eu sei de tudo isso, Senhores. E até contei pros meus filhos. A maioria deles acredita em mim e nos Senhores, a grande maioria. Mas esses mal-agradecidos que reclamam, uns poucos, justamente aqueles a quem eu resolvi dar um pouquinho mais que à enorme maioria, apesar de não tanto quanto aos meus preferidos. São eles, Senhores, o motivo da minha vinda. Não sei o que eu devo fazer para satisfazê-los. Ou calá-los.

Os Senhores sorriram, aliviados. Ah, era isso? Era muito fácil.

- Dê um pirulito a eles. Ou desconverse.

- Isso eu já fiz, Senhores. Mas eles continuaram.

- Então - os Senhores ficaram com um ar sombrio - está na hora de soltar os cachorros.

3 comentários:

Camila Chaves disse...

enquanto lia esse teu texto, lembrava-me de uma amiga filha de comerciantes, estudante de filosofia e militante de esquerda e de um conflito familiar que ela contava.

contava que sua mãe, embora fosse uma pessoa "boa", tinha tais sentimentos relativos à bondade relacionados a algo instintivo, de sua própria individualidade.

daí, quando questionada por sua própria filha sobre um de seus empregados e o (baixo) salário que ele recebia, quase "solta os cachorros" em cima da coitada da estudante.

o engraçado (ou seria trágico?) é que a sociedade capitalista consegue mascarar a opressão de tal forma que seus escravos veem esse sistema como um gerador de bem-estar social. é um trabalho recompensado por uma quantia que lhe permite, digamos, uma certa "melhoria".

não sabe esse tabalhador, porém, que essa quantia recebida é muito inferior ao valor de sua força de trabalho. sempre lembro da relação existente entre o salário mínimo e o valor da cesta básica...

mais ou menos assim... o sistema explora... aperta... mas vai com calma porque não pode ser muito! afinal, o coitado do trabalhador tem que sobreviver para que amanhã ele volte "novinho em folha", quem sabe até sorrindo, para fazer mais lucro.

bom. bom. bom. (:

Seane Melo, Secoelho disse...

Gostei muito da sua historinha, amigo gato. Quando os leio sempre viajo dentro das palavras e começo a seguir as suas linhas ao mesmo tempo em que me encho de expectativas. Sempre idealizo outros finais. Acho que devo ser muito bobinha, mas quem dera o destino dO indivíduo não fosse assim, nem os dos filhos mal-agradecidos...

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