quarta-feira, 2 de abril de 2008

Primeiro de abril

“É lícito pensar que a humanidade revela sua verdadeira vocação nesta fantástica data, o dia da mentira”, foi o que Karl Marx disse a respeito do Dia da Mentira (O Capital – Livro I, pág. 235), talvez numa das melhores citações a respeito deste dia. Nele, os homens derramam, uns sobre os outros, brincadeiras e trotes – algumas de tom bastante duvidoso – no intuito de “celebrar” uma tradição que provavelmente remonta ao séc. XVI. "Provavelmente" porque, como não poderia deixar de ser, o nascimento desta data, ironicamente, também está imersa num festival de enganosas patranhas.

Numa das mais famosas origens, conta-se que ela surgiu quando, em 1564, o então rei da França, Carlos IX, determinou que o primeiro dia do ano fosse reajustado para o dia primeiro de janeiro, cumprindo uma das ordens papais estipuladas no novíssimo calendário gregoriano, adotado precedentemente em terras francesas e, em seguida, no restante da Europa. Mas essa mudança arbitrária trouxe uma perturbação para a celebração do Ano Novo, que antes era comemorado no dia primeiro de abril, culminância de um festejo que se iniciava em 25 de março, marco da chegada da primavera européia. Como naquele tempo as informações demoravam anos para atravessarem as longas distâncias – Gutenberg sequer havia inventado a imprensa – e, mesmo entre os bem-informados, havia alguns com a ferrenha obstinação de resistir à determinação real, muitos continuaram a comemorar a virada do ano em sua data primitiva, transformando-se em alvo para a aplicação de uma idéia saída de alguma mente indiscutivelmente doentia e irreverente, que era a de engendrar pequenos golpes para zombar dos participantes de la résistance, que a princípio resumiam-se em lhes enviar estranhos presentes ou os convidar a festas inexistentes. Com o tempo, o primeiro de abril converteu-se numa data ilusória, num falso Ano Novo, dia de não se comemorar mais nada, servindo apenas como pretexto para que os engraçadinhos de plantão pudessem dar seguimento ao festival de peças mentirosas destinadas aos ingênuos que persistiam nas comemorações atrasadas ou que não se lembravam das intenções galhofeiras recorrentes, hábito que terminou por se espalhar por toda a Europa e, mais tarde, para o mundo.

Desses mais de quatro séculos de peripécias e ilusões, muitas mentiras de primeiro de abril tornaram-se incrivelmente famosas, tanto pela sua inesperabilidade quanto pelas suas consequências desastrosas: um jornal sul-africano certa vez publicou que a África do Sul tinha comprado o Moçambique por 10 bilhões de dólares, causando um rebuliço generalizado em território moçambiquenho que provocou uma guerra civil que perdura até hoje; no Moscou Times, jornal russo, foi noticiado que um diminuto país soviético, o Djortostão, havia declarado guerra ao Vaticano, com o objetivo de recuperar o título de menor país do mundo, fato que levou muitos russos a saírem às ruas para protestar contra o Islã, pois pensaram que só os muçulmanos poderiam estar por trás de uma atitude destas, e houve quebra-quebra e tumultos generalizados por toda a Rússia; no Marrocos, após notícia de que o Brasil não participaria da Copa do Mundo de 2006, pois o dinheiro destinado à seleção teria sido enviado para conter os incêndios que, à época, destruíam a Amazônia roraimense, foi organizada uma campanha para recolher todo o dinheiro necessário para que a seleção canarinho não tivesse que desistir da Copa, que é considerada sagrada em várias regiões marroquinas.

Todos esses fatos citados acima, juntamente com a natural habilidade humana para inventar e contar mentiras, fazem bastante jus ao pensamento de Marx: o Homem, sim, é verdadeiramente um ser mentiroso, inventor e contador de lorotas, sempre pronto a passar a perna em alguém ou simplesmente enganá-lo, à desculpa de uma brincadeirinha. Tudo, entretanto, com bastante pompa, claro: estamos lidando com uma relevantíssima tradição secular.

(Todos os fatos citados aqui neste texto são explicitamente mentirosos. Mas isso, claro, também pode ser uma mentira...)

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Como seria bom também poder dizer que são mentiras de primeiro de abril as denúncias que o Fantástico fez a respeito das fraudes educacionais na terceira maior cidade do Maranhão, Caxias, que resultam na total falta de estrutura de algumas escolas de lá, onde crianças não têm merenda nem banheiro nem assentos decentes e a prefeitura compra 22 quilos de carne inexistentes. Como seria do agrado de todos que fossem apenas notícias levianas e folgazãs as declarações de estado de emergência em quinze municípios maranhenses em virtude das fortes chuvas que assolam a região, causando enchentes e uma quantidade crescente de mortos e desabrigados. Como seria extremamente reconfortante saber que o disse-me-disse decorrente da CPI dos cartões corporativos – as fraudes, as gastanças sem limites, as bravatas, os dossiês secretos – não fosse, afinal, apenas mais uma das lorotas tão costumeiras aqui no nosso queridíssimo país, o Brasil, onde todo dia é dia da mentira.

Um comentário:

Raimundo disse...

Agradeço os comentários no meu blog, e devo dizer que poderia repeti-los nas mesmas palavras sobre esse texto, um tanto quanto informativo - ainda que o parêntese final diga a verdade. Parêntese que aliás captou bem o espírito proclamado por Marx.

E para lembrar que não apenas as pessoas, mas os teclados também parecem gostar de pregar peças, no terceiro parágrafo há um V querendo se exibir mais do que deve no verbo "provocar".

Vou adicioná-lo aos meus favoritos e ler os outros textos quando tiver tempo suficiente.
Abraços.