quarta-feira, 21 de maio de 2008

Velho medo

Pense um pouco: se você visse uma criança sofrendo maus-tratos nas mãos de um de seus pais, você se perguntaria se aquele pai realmente teria condições de cuidar da criança, não? Num ímpeto mesmo, poderia querer arrancá-la das garras do inconseqüente pai ou da desnaturada mãe, certo de que este não tinha mais direito de cuidar do filho. E ainda que você fosse insensível a ponto de reagir com indiferença a uma visão destas, jamais o poderia fazer o Estado: como determina o Estatuto da Criança e do Adolescente, “é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”. Partindo desse princípio, o Estado não só não permaneceria alheio ao incidente como poderia até destituir a guarda da criança.

Pensado isto, é possível fazer a seguinte analogia: o governo brasileiro, em certa medida, é como se fosse uma espécie de “pai”, de “tutor” de todas as instâncias as quais fica a seu cargo administrar, desde a vida de seus cidadãos até as eventuais necessidades dos Estados; sem dúvida, nessa lista, entraria também o zelo por regiões de grande interesse estratégico e ambiental, como a Amazônia, a maior e mais importante floresta equatorial do mundo, tratada com tanto descaso pelas nossas autoridades. Ou seja: em nossa discutível analogia, o governo brasileiro seria como um pai indiferente e cruel que, se não maltrata, permite que outros continuamente maltratem sua filha Amazônia, à vista de todos. E, também nesta situação, há quem pense que este continental pai não mais deveria prosseguir como tutor incondicional de sua filha...

Também pudera. Deixando a alegoria inicial de lado, a Amazônia é um território de suma importância mundial, não apenas pela sua imensurável diversidade animal e vegetal ou por suas encantadoras belezas naturais, mas também porque pode esconder em sua fauna segredos que poderão ser muito úteis para a humanidade – entre vários outros fatores, claro – , e o Brasil, país que contém dentro de seus limites geográficos 60% da floresta amazônica, vem miseravelmente falhando em conter o avanço do desmatamento e da poluição na região, pondo em risco este ecossistema de valor inestimável para os brasileiros e, principalmente, para o planeta Terra. Por isso, seria muita ingenuidade nossa acreditar que as nações que mandam no mundo – o G-8 – permanecerão de braços cruzados enquanto observam-nos destruir a Amazônia e todas as suas possibilidades. Se o ritmo de desflorestamento continuar aumentando nessa velocidade, é quase garantida uma invasão estrangeira, por mais que os verdadeiros motivos por trás de uma ação dessas fossem outros, mais mesquinhos e abjetos: insistindo na destruição, estaríamos dando o pretexto que faltava para estas ambiciosas nações finalmente pusessem as mãos nas cobiçadas riquezas amazônicas.

E é até possível que a temida invasão se torne realidade mais cedo que imaginamos, e nem precisamos recorrer ao fato de que a quantidade de ONG's estrangeiras atuando na região já pode ser considerada uma invasão: recentemente o New York Times indagou “inocentemente” a quem pertence a Amazônia e disse que "ao contrário do que os brasileiros acreditam, a Amazônia não é propriedade deles, ela pertence a todos nós". Em resposta, o novo ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, declarou que "Quem faz uma proposta dessas deveria passar por uma requalificação psicológica, tal o disparate que contém. Os donos (da Amazônia) somos nós", numa tentativa de encerrar uma discussão que só tende a ficar cada vez mais complicada nos próximos anos, em virtude de uma necessidade cada vez maior de recursos energéticos e por conta da crescente discussão em torno dos efeitos do aquecimento global e da poluição no clima mundial.

Num cenário como esse, não é de todo estranha a notícia de agressão sofrida por um engenheiro da Eletrobrás por um grupo de índios caiapós, durante o encontro que discute a possível construção da hidrelétrica de Belo Monte no rio Xingu, afluente do glorioso Amazonas. Talvez seja mesmo uma imagem de teor emblemático. Paulo Fernando Rezende, o engenheiro, que defendia a instalação da hidrelétrica, foi atacado com golpes de facão e espancado pelos índios, uma atitude que deve ser execrada, jamais vista como algo louvável. Mas não se pode permitir que ela seja utilizada como uma tentativa de desmerecer o ponto de vista defendido pelos caiapós, apenas uma das diversas etnias indígenas que vivem às margens do Xingu e que teriam que ser deslocadas do lugar em que vivem a gerações para que a tal hidrelétrica fosse produzida. Hidrelétrica esta que, ao contrário do que diz o governo, não está sendo construída para benefício da população brasileira, muito menos da paraense, visa apenas fornecer energia para as empresas mineradoras da região, que poluem e saqueiam o meio ambiente no qual estão inseridas sem que sequer tragam qualquer compensação econômica para a região ou melhoria na qualidade de vida do povo do Pará.

A mídia, sempre tendenciosa, omite as questões mais importantes, implicitamente defendendo a construção da hidrelétrica, sem ligar para todos os problemas que ela irá gerar, a despeito do pouco que contribuirá para o país. É possível que, mais uma vez, ela esteja defendendo interesses escusos, provavelmente estrangeiros, participando ativamente da filosofia de vida que rege a maior parte da elite brasileira, que é a de vender o país em troca de um lucro insensato e inconseqüente, entregando nossas riquezas de mão beijada a qualquer um. E nós aqui, correndo o risco de ver o velho medo de que a Amazônia seja controlada por outros países tornar-se uma triste realidade.

Impotentes.

5 comentários:

Rômulo Pacheco disse...

Estou aguardando outro texto como 'o paranóico'.

Nem sempre quem achamos ser o inimigo é realmente o inimigo. Gostei mesmo do texto!

E Fernando Pessoa já li sim, inclusive alguns livros trantando sobre ele.

E que eu gostei de você ter lembrado de Pessoa ao ler meu texto, isso eu não posso negar!

Abraços, camarada felino!

Seane Melo, Secoelho disse...

esperando...

Seane Melo, Secoelho disse...

Aiai, senhor gato, essas temáticas que você têm usado relacionadas a meio ambiente me deixam "P" da vida.
Eu sempre achei que um dia tentariam nos roubar a Amazônia, daqui a 15 anos talvez, mas, pelo visto, será em menos tempo que isso...

Anônimo disse...

Oh, meu caro gato... Uma nação é destruída da pior maneira possível quando é de dentro pra fora, veja só o Afeganistão... Está como está pelas guerrinhas internas, se deixaram vulneráveis a intromissão de outros países com a bandeira da "melhora" e coisa e tal, sabe como é...
Me sinto completamente frustrada ao não saber como fazer algo pra uma conscientização nacional. É sempre um longo processo, mas enquanto a educação não estiver sendo realmente para todos vai continuar sendo assim.

Samanta disse...

Isso já vem desde a época que o Brasil começou a extrair borracha. Se apossar da Amazônia sempre foi o plano do gringos - como aliás, sempre é o plano: arrumar uma desculpa qualquer pra usurpar as "riquezas" dos outros países. E enquanto isso, eles vão roubando aos poucos, como quando um japonês patenteou o cupuaçu.

O pior é que a maior parte do tempo o governo aceita "sorrindo" os abusos, sem se posicionar, fazendo vista grossa e muito pouco se importando em proteger os patrimônios naturais do país, no máximo "fazendo um H" de "salve a Amazônia" - mas por outro lado aprovando um Código Florestal escroto e implementando Belo Monte.

E Belo Monte tá aí - e olha que esse texto teu já tem 4 anos...