quinta-feira, 17 de abril de 2008

Isabella

Amanhã, dia 18 de abril, a menina Isabella faria seis anos. Não tenho certeza se seria na casa de seu pai ou de sua mãe, cercada por amiguinhos de escola ou apenas pela família, nem sei se haveria uma festa ou não. Só sei que, amanhã, ela estaria vivendo aquele conhecido clima de felicidade e harmonia que acomete aos mais jovens nos dias de seus aniversários, dando sorrisinhos sem motivo, ouvindo cantarem “Parabéns pra você” em vários lugares, talvez até com uma certa vergonha “sem-vergonha” e chegando a mais uma etapa nessa escalada maluca e imperscrutável que é a vida. Mas não mais.

Claro que você já sabe por que ela nunca terá sua festinha de seis anos. Se não esteve trancado num baú ou morando numa caverna durante as últimas duas semanas, sem contato com a civilização, você deve estar por dentro do caso que extrapolou as barreiras regionais de indignação e comoveu o país inteiro: o assassinato de Isabella Nardoni, espancada e, em seguida, arremessada da sacada do sexto andar do prédio em que morava, em São Paulo. Ela ainda foi resgatada com vida, mas não resistiu aos ferimentos decorrentes da queda e morreu a caminho do hospital. Daí pra frente, o que se viu foi o já manjado esquema de situações esdrúxulas e atuações abjetas que geralmente ocorrem nos momentos de comoção nacional, pelo menos ao analisarmos o recente passado brasileiro.

As autoridades, pra variar, reprisaram o mesmo velho e batido show de incompetência e despreparo, metendo os pés pelas mãos, às vezes em declarações precipitadas que em nada ajudavam as investigações, noutras em equivocadas ações investigativas, que transformaram um caso simples – pelo menos do ponto de vista da criminalística – num embaralhado e insolúvel quebra-cabeças. A polícia, em especial, esmerou-se no festival de asneiras usuais e deu um show à parte, desleixando-se na obtenção de pistas e objetos imprescindíveis à perícia na elucidação do caso ­– como as roupas utilizadas pelo pai e pela madrasta, principais suspeitos, no dia do crime – e não observando aspectos cruciais para determinação dos culpados. Fatos como a localização do crime, sexto andar de um prédio, reduziriam enormemente o foco das investigações, pois, se nenhuma entrada foi forçada, o assassino sem dúvida entrou pela porta da frente com a chave, o que diminuiria sensivelmente a quantidade de possíveis suspeitos e deixaria mais fácil e averiguável a teoria de uma terceira pessoa. Mas, ao que parece, passaram despercebidos.

Como no caso do menino João Hélio, aquele garoto que foi arrastado pelo lado de fora do carro de seus pais – roubado por uma dupla de ladrões apressados – preso ao cinto de segurança, a mídia caiu em cima. Com o sensacionalismo de sempre, cobriu cada passo das investigações: interrogou vários dos envolvidos com o caso, fossem estes parentes, policiais ou apenas testemunhas; criou e debateu diversas teorias sobre o que teria ocorrido no dia do crime, muitas vezes dedicando programas inteiros a especulações desse tipo ou matérias sobre o caso; invadiu e desrespeitou a privacidade dos familiares num momento como este, de todas as formas possíveis, em nome de uma fingida e forçada indignação que, na melhor das hipóteses, aproveitou-se da tragédia para atingir a sensibilidade do povo e obter mais audiência – e, na pior, mesclou esta intenção com outra, mais vil e cretina, de atrair toda a atenção pública para o caso, enquanto os podres da CPI dos cartões corporativos eram varridos pra debaixo do tapete.

A população, atiçada pelo sensacionalismo da imprensa, não se fez de rogada e logo se envolveu por completo no drama que se desenrolou após a morte de Isabella. Muitos já tinham opinião formada e cristalizada minutos após tomarem conhecimento do caso. Outros, como algum dos convidados de quaisquer dos programas que debatiam o tema, metiam-se em turbulentas e inúteis discussões sobre possíveis maneiras de descobrirem o(s) culpado(s), brilhantes defesas de suas próprias deduções geniais ou simples troca de farpas com pretexto nobre. No dia em que a polícia fez cumprir o habeas corpus concedido pela Justiça ao casal Alexandre Nardoni e Ana Carolina Jatobá – respectivamente, pai e madrasta da menina – muitos curiosos compareceram ao local de soltura, dentre estes, vários que empunhavam pedras, à espera de uma oportunidade de “fazer justiça” com as próprias mãos, como nos tempos bíblicos. (Mais impressionante é saber que há tempos não se move um dedo contra as falcatruas e “faltas de decoro” do Congresso Nacional e do Governo. Entretanto, quando o assunto é outro...)

Mas tudo isso é vão, toda esta superficial e pretensiosa análise é desnecessária, de nada adianta. E nem a solução do caso e a conseqüente punição dos culpados faria alguma diferença. O que realmente importa é que amanhã, a pequena Isabella completaria seis anos de idade, e estaria feliz como nunca, iluminando o ambiente em que estivesse com seu sorriso ingênuo e contagiante, como vimos nas suas tão exploradas fotografias veiculadas nos meios de comunicação. E nós, tolos e vazios, meros objetos de manipulação midiática e sei lá o que mais, nem saberíamos de sua existência – para o bem dela. E a bela Isabella continuaria a brincar com seus amiguinhos, a se maravilhar com as belezas do mundo, a aprender as duras lições que a vida ensina, a chorar seus desencantos e desilusões, a crescer de corpo e de mente e a seguir seu próprio destino: único, indefinível e cheio de possibilidades.

Mas não mais.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Pra não dizer que não falei das dores

(Após o choque de perceber que já passara da meia-noite e que eu não poderia publicar minha primeira crônica semanal como havia estipulado, somente e sempre às quartas e domingos, não sei o que me aconteceu. Levado por um sentimento inefável, uma mistura desregrada de melancolia profunda, indignação passageira, humor discutível, lírica sem escrúpulos e falta do que fazer, escrevi a “poesia” que segue logo abaixo. Não se assuste, ou melhor, tenha vergonha na cara e se assuste mesmo, onde já se viu, perder tempo lendo porcaria na internet? Você faz idéia da diversidade de atitudes produtivas que poderia estar desenvolvendo neste instante com o propósito de ajudar o mundo ou a si próprio, mas está aqui, ainda, lendo esta frase até o final? Pare agora. Vá estudar. Vá ler. Vá ajudar seu pai, sua mãe. Ponha o lixo pra fora ou comida para o gato ou, sei lá, ponha o gato pra fora e a comida no lixo. Enfim, saia daqui.

Bom, se você chegou até aqui após toda essa advertência preliminar, paciência. Quer dizer, muito obrigado também, e parabéns pela sua coragem, mas agora você está por sua conta. Depois não venha dizer que não avisei.

Ah, uma dica: o texto abaixo é pra ser lido em ritmo de funk carioca.)

Pára tudo, pára tudo
Não sei onde vim parar
O Universo é absurdo
Você pode concordar

Tem gente de todo tipo
Tem gente até demais
Uns ficam chupando pipo
Outros lendo seus jornais

Dá até pra gente indagar:
Essa gente tem pra quê?
Quem pode vir me falar?
Quem pode vir me dizer?

Quem pode expor o segredo
Desse Cara lá no Céu?
Meu irmão, deixe de medo,
Cumpra logo seu papel

Que eu não tou pra pagar mico
Muito menos King Kong
Eu sou pobre, não sou rico
Nem sei jogar ping-pong

É, eu sei, também senti
Essa rima até doeu
Quem já leu até aqui
Sei que já se arrependeu

Mas nada importa, galera
Só nos resta festejar
Tá chegando a Nova Era
Vamu vê no que é que dá

Dá pra sentir que o futuro
Tem rastro e cheiro de guerra
É o destino mais seguro
Desta raça que se encerra

E nem dá pra reclamar
Nem culpar o Satanás
Toda desgraça que há
O Homem é que foi atrás

Mas eu só quero saber
Como vai ser o meu fim
No dia em que eu morrer
O que vão fazer de mim

Vão me enterrar na areia?
Não, não; vão me cremar
Vão me enterrar na areia?
Não, não; vão me cremar

(E a Terra?)
A Terra tá mais quentinha
A Terra tá mais quentinha
A Terra tá mais quentinha
Calma, calma, planetinha
precisa esfriar

Então cancela
Cancela
Cancela o carbonão
Cancela
Cancela
Cancela a poluição
Não se esconde, Tio Sam
Não destrua o Amanhã

E só pra finalizar
Esta rima démodé
Eu queria te lembrar
De outra coisa bem deprê

O petróleo tá acabanu
E ele não é renovável
Pode durar mais cem anos
Mas o fim é inevitável

É preciso uma fonte
De energia alternativa
Pra que haja um horizonte
Pra que a gente sobreviva

Até lá, meu caro amigo
Veja bem como é que é:
Traga paz e amor consigo
E seja o que Deus quiser

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Incertezas

Talvez você esteja por fora, é possível. Com tantas coisas acontecendo no Brasil e no mundo e a rapidez e a facilidade com as quais as notícias são obtidas e informadas hoje em dia - sem contar aqueles fatos mais inquietantes, os nossos problemas – é natural que muitas informações, mesmo as de grande relevância na atualidade, passem despercebidas. Portanto, não há porque alguém mais informado possa sentir-se no direito de fazer uma cara de desdém caso você ainda não saiba da atual crise americana.

Mas, uma vez avisado, fique de olho. Até o Fed (Banco Central americano) e o FMI (esse você já conhece) andam bastante apreensivos. Em recente declaração, Alan Greenspan, ex-presidente do Fed e "autoridade" nesses assuntos, afirmou que a presente desaceleração da economia motor do mundo contemporâneo é a pior desde a Segunda Guerra. Os economistas do FMI foram ainda mais longe, comparando esta crise financeira com a inesquecível e nostálgica crise de 1929, que resultou no crash da Bolsa de Nova York e em anos de recessão na economia dos Estados Unidos – e, por extensão, do mundo todo.

Em outra época e outro lugar, numa crise bem mais antiga do que estas últimas citadas, a situação crítica também foi se aproximando pouco a pouco, sem que as pessoas se dessem muita conta do que estava acontecendo, e deu no que deu: a queda de um império. A crise a que me refiro é a chamada “Crise do terceiro século”, que ocorreu de 193 a 285, no berço da nossa civilização ocidental, o Império Romano. Como a economia romana – e conseqüentemente, a sociedade como um todo – era escravista e baseada na expansão territorial, com o fim dos avanços das legiões romanas, que já haviam conquistado praticamente todo o território disponível – a Índia e a China ficam fora desta conta, claro – e usado toda a mão de obra “à disposição”, todo o Império começou o lento e doloroso processo de declínio que culminou com a deposição do último imperador do lado ocidental, Rômulo Augústulo – o lado oriental ainda teria uma sobrevida de mais ou menos quinze séculos. Com a visão incrementada com quase dois milênios de história humana, é fácil olhar pra trás e fazer todas as ligações necessárias entre os fatos e perceber que um consertozinho aqui, outro concertozão acolá, menos um errinho em outro lugar ali e talvez a Grande Roma não tivesse caído e permanecesse por quantos anos mais o acaso ou o destino permitissem. Mas, à época, nada disso era visível, muito menos conexivo, e os cidadãos romanos, mesmo os senadores e os pomposos imperadores, não tinham a menor idéia do que viria a acontecer e não puderam fazer muita coisa para evitar serem atropelados pela História.

Calma, calma. Não estou querendo dizer que estamos assistindo a uma refilmagem em forma de reality show de um dos acontecimentos mais cruciais da história ocidental. A atual conjuntura é bastante diferente da daquela época: o capitalismo (hoje, financeiro) e seus filhotes mais recentes, o neoliberalismo e a globalização, deram origem a formas de organização da sociedade cada vez mais diferentes que as da Antigüidade. Também não há, como havia naquela vez, nenhuma tribo bárbara – sejam alienígenas tecnologicamente mais avançados ou sejam, sei lá, gorilas alterados geneticamente –, que se saiba, esperando um vacilo nosso para nos invadir e saquear nossas maiores cidades, atazanando nossas fronteiras e precipitando qualquer possibilidade de ruína. Além do mais, os mesmos “tios” que deram suas opiniões mais acima disseram que não devemos nos preocupar (nós, latino-americanos), que a crise americana não vai prejudicar a economia em desenvolvimento da América Latina – mesmo que a Europa e o Japão estejam em polvorosa em relação as suas respectivas economias.

Mas nunca é demais advertir e lembrar que o nosso tempo aqui, agora, é único, que tudo aquilo que acontece ao nosso redor é o que nunca antes aconteceu – filosófica e não-analogicamente falando – e que não há nenhuma segurança pétrea designando os acontecimentos futuros. Não sabemos se essa crise de agora é o prenúncio do tão sonhado congraçamento entre todas as nações – duvido muito – ou a primeira de uma série de crises que culminarão na terceira e última guerra mundial, e desconfio bastante que nem mesmo os astrólogos poderão ler nas estrelas o resultado final de uma crise que teve início no obscuro e, até pouco tempo, desinteressante mercado imobiliário americano. As incertezas pertinentes ao futuro do mundo pesam todas agora sobre os nossos ombros e, como no caso dos romanos, podemos estar imersos no olho de um furacão devastador, que mudará a história para sempre e permanecemos completamente alheios e indiferentes a isso, como bêbados em meio a uma revolução.

Ou não. Por via das dúvidas, é bom ficar de olhos bem abertos.

domingo, 6 de abril de 2008

Em frente à TV

– Meu bem, você não vai parar em nenhum dos canais, não, hein?

– Vou.

– Então por que não pára?

– Já vai, já vai... Só um instantinho...

– Que cê tá fazendo?

– Tou vendo a programação de todos os canais.

– Por quê?

– Pra eu poder decidir melhor o que assistir.

– Mas tem que ver todos mesmo...?

– Claro. Já pensou se eu fico assistindo um programazinho mais ou menos, enquanto outro muito melhor tá passando em outro canal, às vezes do lado? Não, não... Tenho que ver todos.

– Deixa disso, meu bem... Olha só, volta ali no Faustão, deixa lá...

– Ah, no Faustão, não. Só em último caso.

– Por que, que preconceito é esse agora? Até parece que nunca assistiu... Antes de comprar essa TV à cabo, você bem que gostava...

– Nada disso, eu só gostava das videocassetadas. O resto eu só via porque não tinha jeito mesmo.

– Sei, sei... Quem te viu, quem te vê, seu Adalberto...

– Não sei também que implicância é essa agora. Qual o problema de eu ver o que tá passando em todos os canais?

– Nada não. Problema nenhum...

– Não, agora eu quero saber.

– Calma, meu bem... Não é nada. Pode ver seus canaizinhos em paz.

– Hum...

– ...

– ...

– Deixa lá, eu adoro esse filme!

– Quê? Em Cidade dos Anjos?

– É, esse mesmo, volta!

– Mas, querida, você já assistiu a esse filme bem umas cinco vezes.

– Mas é com o... o... o menino lá, como é o nome dele?

– Nicolas Cage.

– Ele!... Ah, eu gosto tanto dele... Da menina também, a – como é mesmo? – Nelly? Não, Melly...

Meg Ryan.

– Pois é, deixa lá...

– Espera. Só se não tiver passando nada melhor.

– Ah, mas você, hein? Que é que custa?

– Custa que pode estar passando um programa bem melhor e a gente pode perder só pra você assistir a um filme que você já até assistiu. Além do mais, o filme é dublado e você sabe que eu detesto filmes dublados.

– Tá bom, tá bom... Continua então.

– Não precisa pedir, já estou continuando.

– Ah, mas como você é enjoado, viu? Eu, hein... Credo.

– É só você não ficar azucrinando minha paciência. E nem vem que não tem, esse seu tom de sarcasmo não engana ninguém.

– Mas é que a gente passa a semana inteira trabalhando e quando quer ficar assistindo TV no fim de semana pra descansar, fica um chato que não pára em lugar nenhum mudando de canal de cinco em cinco segundos!

– É, você ta reclamando, mas se eu não tivesse fazendo isso e tivesse deixado no Faustão como você pediu antes, você nem saberia que esse filme ia tá passando.

– Melhor, que eu não ia ter o desgosto de saber que vou perder de assistir.

– O filme não vai acabar agora, deixa só eu terminar de ver os canais, poxa...

– ...

– ...

– ...

– ...

– Por que você não deixa nesse outro filme? Tenho certeza que é dos que você gosta.

– Eu sei, mas acho que ele já começou faz tempo.

– E o que é que tem?

– “Que é que tem” que se a gente começar a assistir agora, pode vir a não entender muitas coisas.

– Que é que tem pra entender nesse filme, é uma comédia, homem de Deus!

– Mesmo assim. Vai que precisa.

– Ah, não! Isso já foi longe demais.

– ...Que você vai fazer?

– Eu? Nada não... Só matar aquela aranha ali.

– Uma aranha?!? Onde???

– ...

– Cadê essa maldita aranha? Mata logo ela!

– ...

– Ei! Me devolve esse controle!

– Não devolvo nada.

– Me devolve o controle remoto agora!

– Não!

– Me dá isso aqui!

– Não! Agora a gente vai assistir ao Faustão!

– Que Faustão, que nada!

– Vai, sim!

– Hunpf... Me dá...

– Nãummmmmmm...

– mmmmm...

– mmmmm...

– Arf...Amor... Arf, arf...

– ...Que é?... Arf...

– É que ta me dando umas idéias você por cima de mim...

– Adalberto! Não, pára!

– Que é isso, amor, faz tanto tempo...

– Adalberto, tire já sua mão daí... Adalberto! Ãnh... Oh...

– Tá gostando, amor?...

– Tou sim... Continua... Vai...

– Há-há! Consegui!

– Adalberto! Não acredito!

– Peguei o controle de volta!

– Não acredito que você me usou!

– Você também me enganou.

– Mas não dessa forma!

– Não mesmo, dona Solange. Você tava até gostando. Já eu tenho pavor de aranhas, como você sabe.

– Eu estou chocada. Cho -ca - da.

– Pode fazer o teatrinho que quiser. Eu vou continuar a ver os canais.

– Veja o que você quiser. Pra mim, isso é coisa de doido. Doido!

– Coisa de doido... Coisa de doido é brigar por... Olha aí! Eu não disse? Tá acabando Seinfield! Eu perdi o finalzinho de Seinfield por causa de uma besteira!

– E tem mais: quer dizer que você não ficou nem um pouco excitado?

– Eu não acredito que eu perdi o finalzinho de Seinfield...

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Primeiro de abril

“É lícito pensar que a humanidade revela sua verdadeira vocação nesta fantástica data, o dia da mentira”, foi o que Karl Marx disse a respeito do Dia da Mentira (O Capital – Livro I, pág. 235), talvez numa das melhores citações a respeito deste dia. Nele, os homens derramam, uns sobre os outros, brincadeiras e trotes – algumas de tom bastante duvidoso – no intuito de “celebrar” uma tradição que provavelmente remonta ao séc. XVI. "Provavelmente" porque, como não poderia deixar de ser, o nascimento desta data, ironicamente, também está imersa num festival de enganosas patranhas.

Numa das mais famosas origens, conta-se que ela surgiu quando, em 1564, o então rei da França, Carlos IX, determinou que o primeiro dia do ano fosse reajustado para o dia primeiro de janeiro, cumprindo uma das ordens papais estipuladas no novíssimo calendário gregoriano, adotado precedentemente em terras francesas e, em seguida, no restante da Europa. Mas essa mudança arbitrária trouxe uma perturbação para a celebração do Ano Novo, que antes era comemorado no dia primeiro de abril, culminância de um festejo que se iniciava em 25 de março, marco da chegada da primavera européia. Como naquele tempo as informações demoravam anos para atravessarem as longas distâncias – Gutenberg sequer havia inventado a imprensa – e, mesmo entre os bem-informados, havia alguns com a ferrenha obstinação de resistir à determinação real, muitos continuaram a comemorar a virada do ano em sua data primitiva, transformando-se em alvo para a aplicação de uma idéia saída de alguma mente indiscutivelmente doentia e irreverente, que era a de engendrar pequenos golpes para zombar dos participantes de la résistance, que a princípio resumiam-se em lhes enviar estranhos presentes ou os convidar a festas inexistentes. Com o tempo, o primeiro de abril converteu-se numa data ilusória, num falso Ano Novo, dia de não se comemorar mais nada, servindo apenas como pretexto para que os engraçadinhos de plantão pudessem dar seguimento ao festival de peças mentirosas destinadas aos ingênuos que persistiam nas comemorações atrasadas ou que não se lembravam das intenções galhofeiras recorrentes, hábito que terminou por se espalhar por toda a Europa e, mais tarde, para o mundo.

Desses mais de quatro séculos de peripécias e ilusões, muitas mentiras de primeiro de abril tornaram-se incrivelmente famosas, tanto pela sua inesperabilidade quanto pelas suas consequências desastrosas: um jornal sul-africano certa vez publicou que a África do Sul tinha comprado o Moçambique por 10 bilhões de dólares, causando um rebuliço generalizado em território moçambiquenho que provocou uma guerra civil que perdura até hoje; no Moscou Times, jornal russo, foi noticiado que um diminuto país soviético, o Djortostão, havia declarado guerra ao Vaticano, com o objetivo de recuperar o título de menor país do mundo, fato que levou muitos russos a saírem às ruas para protestar contra o Islã, pois pensaram que só os muçulmanos poderiam estar por trás de uma atitude destas, e houve quebra-quebra e tumultos generalizados por toda a Rússia; no Marrocos, após notícia de que o Brasil não participaria da Copa do Mundo de 2006, pois o dinheiro destinado à seleção teria sido enviado para conter os incêndios que, à época, destruíam a Amazônia roraimense, foi organizada uma campanha para recolher todo o dinheiro necessário para que a seleção canarinho não tivesse que desistir da Copa, que é considerada sagrada em várias regiões marroquinas.

Todos esses fatos citados acima, juntamente com a natural habilidade humana para inventar e contar mentiras, fazem bastante jus ao pensamento de Marx: o Homem, sim, é verdadeiramente um ser mentiroso, inventor e contador de lorotas, sempre pronto a passar a perna em alguém ou simplesmente enganá-lo, à desculpa de uma brincadeirinha. Tudo, entretanto, com bastante pompa, claro: estamos lidando com uma relevantíssima tradição secular.

(Todos os fatos citados aqui neste texto são explicitamente mentirosos. Mas isso, claro, também pode ser uma mentira...)

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Como seria bom também poder dizer que são mentiras de primeiro de abril as denúncias que o Fantástico fez a respeito das fraudes educacionais na terceira maior cidade do Maranhão, Caxias, que resultam na total falta de estrutura de algumas escolas de lá, onde crianças não têm merenda nem banheiro nem assentos decentes e a prefeitura compra 22 quilos de carne inexistentes. Como seria do agrado de todos que fossem apenas notícias levianas e folgazãs as declarações de estado de emergência em quinze municípios maranhenses em virtude das fortes chuvas que assolam a região, causando enchentes e uma quantidade crescente de mortos e desabrigados. Como seria extremamente reconfortante saber que o disse-me-disse decorrente da CPI dos cartões corporativos – as fraudes, as gastanças sem limites, as bravatas, os dossiês secretos – não fosse, afinal, apenas mais uma das lorotas tão costumeiras aqui no nosso queridíssimo país, o Brasil, onde todo dia é dia da mentira.