domingo, 6 de abril de 2008

Em frente à TV

– Meu bem, você não vai parar em nenhum dos canais, não, hein?

– Vou.

– Então por que não pára?

– Já vai, já vai... Só um instantinho...

– Que cê tá fazendo?

– Tou vendo a programação de todos os canais.

– Por quê?

– Pra eu poder decidir melhor o que assistir.

– Mas tem que ver todos mesmo...?

– Claro. Já pensou se eu fico assistindo um programazinho mais ou menos, enquanto outro muito melhor tá passando em outro canal, às vezes do lado? Não, não... Tenho que ver todos.

– Deixa disso, meu bem... Olha só, volta ali no Faustão, deixa lá...

– Ah, no Faustão, não. Só em último caso.

– Por que, que preconceito é esse agora? Até parece que nunca assistiu... Antes de comprar essa TV à cabo, você bem que gostava...

– Nada disso, eu só gostava das videocassetadas. O resto eu só via porque não tinha jeito mesmo.

– Sei, sei... Quem te viu, quem te vê, seu Adalberto...

– Não sei também que implicância é essa agora. Qual o problema de eu ver o que tá passando em todos os canais?

– Nada não. Problema nenhum...

– Não, agora eu quero saber.

– Calma, meu bem... Não é nada. Pode ver seus canaizinhos em paz.

– Hum...

– ...

– ...

– Deixa lá, eu adoro esse filme!

– Quê? Em Cidade dos Anjos?

– É, esse mesmo, volta!

– Mas, querida, você já assistiu a esse filme bem umas cinco vezes.

– Mas é com o... o... o menino lá, como é o nome dele?

– Nicolas Cage.

– Ele!... Ah, eu gosto tanto dele... Da menina também, a – como é mesmo? – Nelly? Não, Melly...

Meg Ryan.

– Pois é, deixa lá...

– Espera. Só se não tiver passando nada melhor.

– Ah, mas você, hein? Que é que custa?

– Custa que pode estar passando um programa bem melhor e a gente pode perder só pra você assistir a um filme que você já até assistiu. Além do mais, o filme é dublado e você sabe que eu detesto filmes dublados.

– Tá bom, tá bom... Continua então.

– Não precisa pedir, já estou continuando.

– Ah, mas como você é enjoado, viu? Eu, hein... Credo.

– É só você não ficar azucrinando minha paciência. E nem vem que não tem, esse seu tom de sarcasmo não engana ninguém.

– Mas é que a gente passa a semana inteira trabalhando e quando quer ficar assistindo TV no fim de semana pra descansar, fica um chato que não pára em lugar nenhum mudando de canal de cinco em cinco segundos!

– É, você ta reclamando, mas se eu não tivesse fazendo isso e tivesse deixado no Faustão como você pediu antes, você nem saberia que esse filme ia tá passando.

– Melhor, que eu não ia ter o desgosto de saber que vou perder de assistir.

– O filme não vai acabar agora, deixa só eu terminar de ver os canais, poxa...

– ...

– ...

– ...

– ...

– Por que você não deixa nesse outro filme? Tenho certeza que é dos que você gosta.

– Eu sei, mas acho que ele já começou faz tempo.

– E o que é que tem?

– “Que é que tem” que se a gente começar a assistir agora, pode vir a não entender muitas coisas.

– Que é que tem pra entender nesse filme, é uma comédia, homem de Deus!

– Mesmo assim. Vai que precisa.

– Ah, não! Isso já foi longe demais.

– ...Que você vai fazer?

– Eu? Nada não... Só matar aquela aranha ali.

– Uma aranha?!? Onde???

– ...

– Cadê essa maldita aranha? Mata logo ela!

– ...

– Ei! Me devolve esse controle!

– Não devolvo nada.

– Me devolve o controle remoto agora!

– Não!

– Me dá isso aqui!

– Não! Agora a gente vai assistir ao Faustão!

– Que Faustão, que nada!

– Vai, sim!

– Hunpf... Me dá...

– Nãummmmmmm...

– mmmmm...

– mmmmm...

– Arf...Amor... Arf, arf...

– ...Que é?... Arf...

– É que ta me dando umas idéias você por cima de mim...

– Adalberto! Não, pára!

– Que é isso, amor, faz tanto tempo...

– Adalberto, tire já sua mão daí... Adalberto! Ãnh... Oh...

– Tá gostando, amor?...

– Tou sim... Continua... Vai...

– Há-há! Consegui!

– Adalberto! Não acredito!

– Peguei o controle de volta!

– Não acredito que você me usou!

– Você também me enganou.

– Mas não dessa forma!

– Não mesmo, dona Solange. Você tava até gostando. Já eu tenho pavor de aranhas, como você sabe.

– Eu estou chocada. Cho -ca - da.

– Pode fazer o teatrinho que quiser. Eu vou continuar a ver os canais.

– Veja o que você quiser. Pra mim, isso é coisa de doido. Doido!

– Coisa de doido... Coisa de doido é brigar por... Olha aí! Eu não disse? Tá acabando Seinfield! Eu perdi o finalzinho de Seinfield por causa de uma besteira!

– E tem mais: quer dizer que você não ficou nem um pouco excitado?

– Eu não acredito que eu perdi o finalzinho de Seinfield...

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Primeiro de abril

“É lícito pensar que a humanidade revela sua verdadeira vocação nesta fantástica data, o dia da mentira”, foi o que Karl Marx disse a respeito do Dia da Mentira (O Capital – Livro I, pág. 235), talvez numa das melhores citações a respeito deste dia. Nele, os homens derramam, uns sobre os outros, brincadeiras e trotes – algumas de tom bastante duvidoso – no intuito de “celebrar” uma tradição que provavelmente remonta ao séc. XVI. "Provavelmente" porque, como não poderia deixar de ser, o nascimento desta data, ironicamente, também está imersa num festival de enganosas patranhas.

Numa das mais famosas origens, conta-se que ela surgiu quando, em 1564, o então rei da França, Carlos IX, determinou que o primeiro dia do ano fosse reajustado para o dia primeiro de janeiro, cumprindo uma das ordens papais estipuladas no novíssimo calendário gregoriano, adotado precedentemente em terras francesas e, em seguida, no restante da Europa. Mas essa mudança arbitrária trouxe uma perturbação para a celebração do Ano Novo, que antes era comemorado no dia primeiro de abril, culminância de um festejo que se iniciava em 25 de março, marco da chegada da primavera européia. Como naquele tempo as informações demoravam anos para atravessarem as longas distâncias – Gutenberg sequer havia inventado a imprensa – e, mesmo entre os bem-informados, havia alguns com a ferrenha obstinação de resistir à determinação real, muitos continuaram a comemorar a virada do ano em sua data primitiva, transformando-se em alvo para a aplicação de uma idéia saída de alguma mente indiscutivelmente doentia e irreverente, que era a de engendrar pequenos golpes para zombar dos participantes de la résistance, que a princípio resumiam-se em lhes enviar estranhos presentes ou os convidar a festas inexistentes. Com o tempo, o primeiro de abril converteu-se numa data ilusória, num falso Ano Novo, dia de não se comemorar mais nada, servindo apenas como pretexto para que os engraçadinhos de plantão pudessem dar seguimento ao festival de peças mentirosas destinadas aos ingênuos que persistiam nas comemorações atrasadas ou que não se lembravam das intenções galhofeiras recorrentes, hábito que terminou por se espalhar por toda a Europa e, mais tarde, para o mundo.

Desses mais de quatro séculos de peripécias e ilusões, muitas mentiras de primeiro de abril tornaram-se incrivelmente famosas, tanto pela sua inesperabilidade quanto pelas suas consequências desastrosas: um jornal sul-africano certa vez publicou que a África do Sul tinha comprado o Moçambique por 10 bilhões de dólares, causando um rebuliço generalizado em território moçambiquenho que provocou uma guerra civil que perdura até hoje; no Moscou Times, jornal russo, foi noticiado que um diminuto país soviético, o Djortostão, havia declarado guerra ao Vaticano, com o objetivo de recuperar o título de menor país do mundo, fato que levou muitos russos a saírem às ruas para protestar contra o Islã, pois pensaram que só os muçulmanos poderiam estar por trás de uma atitude destas, e houve quebra-quebra e tumultos generalizados por toda a Rússia; no Marrocos, após notícia de que o Brasil não participaria da Copa do Mundo de 2006, pois o dinheiro destinado à seleção teria sido enviado para conter os incêndios que, à época, destruíam a Amazônia roraimense, foi organizada uma campanha para recolher todo o dinheiro necessário para que a seleção canarinho não tivesse que desistir da Copa, que é considerada sagrada em várias regiões marroquinas.

Todos esses fatos citados acima, juntamente com a natural habilidade humana para inventar e contar mentiras, fazem bastante jus ao pensamento de Marx: o Homem, sim, é verdadeiramente um ser mentiroso, inventor e contador de lorotas, sempre pronto a passar a perna em alguém ou simplesmente enganá-lo, à desculpa de uma brincadeirinha. Tudo, entretanto, com bastante pompa, claro: estamos lidando com uma relevantíssima tradição secular.

(Todos os fatos citados aqui neste texto são explicitamente mentirosos. Mas isso, claro, também pode ser uma mentira...)

.......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... ..........

Como seria bom também poder dizer que são mentiras de primeiro de abril as denúncias que o Fantástico fez a respeito das fraudes educacionais na terceira maior cidade do Maranhão, Caxias, que resultam na total falta de estrutura de algumas escolas de lá, onde crianças não têm merenda nem banheiro nem assentos decentes e a prefeitura compra 22 quilos de carne inexistentes. Como seria do agrado de todos que fossem apenas notícias levianas e folgazãs as declarações de estado de emergência em quinze municípios maranhenses em virtude das fortes chuvas que assolam a região, causando enchentes e uma quantidade crescente de mortos e desabrigados. Como seria extremamente reconfortante saber que o disse-me-disse decorrente da CPI dos cartões corporativos – as fraudes, as gastanças sem limites, as bravatas, os dossiês secretos – não fosse, afinal, apenas mais uma das lorotas tão costumeiras aqui no nosso queridíssimo país, o Brasil, onde todo dia é dia da mentira.

domingo, 30 de março de 2008

O cachorro

O Universo, que engraçado, às vezes tem dessas coisas. De tanto seguir esse fluxo tão aparentemente imutável e sério, o seu âmago amalucado e tendendo para o absurdo acaba por se revelar, não raro, quando menos se esperava e de maneira incondicionalmente aparatosa. O sujeito passa a vida inteira observando-o de uma forma e, de repente, de um minuto para o outro, tudo pode mudar; sem que se saiba como ou por que, o cosmo nos surpreende, irremediavelmente.

Veja você o que aconteceu com o Paulo. Numa dessas manhãs meio lentas demais, dessas que parecem nunca se afastar muito das onze horas, trazendo à tona um ar modorrento e apático que só a visão do almoço próximo consegue suavizar um pouco, Paulo encontrava-se esparramado numa das cadeiras do terraço de sua casa, sozinho, fingindo que lia alguma notícia num jornal de dias atrás enquanto torcia secretamente que uma brisa fugidia viesse apaziguar o calor quase sufocante, quando o Extraordinário, subitamente, bateu a sua porta - ou melhor, a sua perna. Era o seu cachorro, o Pêite (sabe como é, Paulo tentou lhe dar a alcunha de Black Dog, mas nem esse nem outro nome pegou, até que um de seus amigos, certo dia, fazendo uma brincadeira com o termo ‘carrapato’, gritou “Fala, Carrapêite!”, causando gargalhada geral e, sem querer, batizando o cão com esse nome, que mais tarde derivou para “Pêite”), que havia apoiado as patas dianteiras em suas coxas e pedia inconfundivelmente uma rodada de carinhos. Meio sem dar muita atenção e sem tirar os olhos do jornal – agora ele tinha se interessado por alguma informação noticiada, algo a ver com OVNI’s – Paulo principiara a usual série de movimentos rítmicos atrás da orelha de seu animal de estimação, quando ouviu, em alto e bom tom, uma voz muito próxima, que disse:

– Muito obrigado, Paulo.

Ele, que estava distraído lendo a notícia ufológica, tanto se assustou que amassou o jornal quase todo ao se endireitar rapidamente à cadeira, à procura da possível fonte da voz sorrateira. Após vasculhar tenazmente todo o ambiente ao redor e chegar à conclusão de que não havia indícios que pudessem sugerir alguma presença oculta – bom, pelo menos, viva – seus olhos detiveram-se no semblante plácido e abobalhado de Pêite, que lhe retribuía o olhar, e Paulo cogitou por segundos que a voz misteriosa - que tinha um quê masculino, apesar de meio pueril – pudesse ter se originado daquela figura engraçada e familiar, e sua fronte desanuviou-se ligeiramente com a comicidade despertada por aquele pensamento, milésimos de segundos antes de descartar a fugaz hipótese e uns poucos milésimos a mais antes de aturdir-se por completo ao observar Pêite dizer, como que respondendo a sua feição inquiridora:

– Sim, Paulo, fui eu mesmo quem falou.

Paulo mal teve tempo de esboçar um fragoroso “Ãhn?!” e já estava no meio de uma espécie de sermão canino, onde Pêite tratara logo de explicar o que estava acontecendo. Contara-lhe que os cães – ora, os cães – há muito tempo que sabiam falar, e que não apenas eles, mas boa parte da fauna terrestre, considerada irracional pelos homens – que Pêite chamou de “ingênuos” – há muito haviam desenvolvido sua comunicação, e num grau tão amplo que eles (os animais) até tinham criado um tipo de organização oculta, que secretamente guiava os rumos do mundo, deixando o ser humano na sua ilusória condição de criatura dominante para que ele, por orgulho, não se aprofundasse nos segredos da Natureza.

– Mas, se são vocês que controlam tudo, por que deixaram a humanidade causar o desequilíbrio ambiental que pode acabar por erradicar a vida na Terra? – Perguntou-lhe Paulo, numa forçada descrença a tudo que ouvira até agora, talvez para tentar ganhar tempo enquanto esperava aquele óbvio delírio passar, ou para escamotear, em vão, o embaraço e a confusão na qual todo seu ser estava imerso naquele momento.

– Isso não é da minha alçada – respondeu-lhe gentilmente Pêite, com sua vozinha que lembrava a de um pokémon, contrastando com sua eloqüência e seriedade. – Mas, quando você diz “toda a vida na Terra”, acredito que esteja se referindo apenas aos da sua espécie. Ou você acha que nós, os verdadeiros animais racionais, não saberíamos nos adaptar às novas transformações?

– Pode até ser... Mas e quanto aos animais extintos ou em ameaça de extinção, hein? Por que então eles estão morrendo?

– Eles não estão morrendo. Apenas estão sendo transferidos a localidades as quais vocês não têm acesso.

Depois, respondendo a outra pergunta de Paulo, Pêite lhe revelou que havia pedido permissão à secreta organização dos animais para poder agradecer pessoalmente – pra não dizer, “caninamente” – a seu dono por todos esses anos de bons tratos e de um carinho fenomenal, pois sua técnica de afagar repetidamente atrás da orelha de Pêite não tinha par na história paralela dos cães.

– E também para que eu tenha outro nome. Nunca gostei muito de Pêite. Quero ser chamado de Garrincha.

– Garrincha?! – Consternou-se Paulo, não entendendo. – Por quê?

– Uma homenagem a um humano que admiro muito.

Após o ocorrido, Pêite nunca mais voltara a falar. Continuou a ser o mesmo cãozinho de olhar simpático e aparvalhado de sempre, correndo atrás das visitas e deixando o tapete da sala constantemente encharcado. Paulo, que até o fim da vida, passou a ter um respeito visível por todo e qualquer animal com que entrara em contato desde então, mesmo sem buscar comprovar as revelações de seu cachorro – às vezes, até duvidando de que aquilo tinha realmente acontecido – , não deixou de brincar com este, apesar de uma ansiedade desmedida nascer em seu peito sempre que se encontravam a sós, e nem alterou de forma muito drástica sua relação com Pêite, ou melhor, Garrincha. Essa, aliás, foi a única mudança realmente significativa após o episódio e ninguém entendeu porque Paulo passara a chamar Pêite, de uma hora para a outra, de Garrincha, provocando gargalhadas e incompreensão em todos, mas que sumiram com o tempo.

O novo nome, a propósito, pegou.

quarta-feira, 26 de março de 2008

Sambas e touradas

Parece encaminhar-se de volta à normalidade a situação diplomática entre Brasil e Espanha, após denúncias de maus-tratos e discriminação feitas por dois estudantes brasileiros barrados em território espanhol e repatriados em seguida, que desencadeou uma espécie de tensão velada entre ambos os países. As denúncias tiveram ainda maior impacto pois chamaram a atenção para a considerável freqüência com que tais cenas têm-se repetido, não apenas na Espanha, mas também em vários outros países europeus e nos Estados Unidos.

Não é de hoje que o problema da xenofobia, principalmente na Europa, gera esse tipo de discussão, de polêmica. A questão dos imigrantes ilegais, geralmente provenientes de países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, permanece como uma constante nos temas discutidos dentro desses países (os desenvolvidos, claro), seja num desses cafés esnobes que abundam por lá, seja nas disputas eleitorais, notadamente as atuais (Sarkozy, na França, foi um dos que se elegeram com promessas de apertar o cerco aos estrangeiros ilegais). Não que essa persistência tenha sido por falta de cara feia européia: há muito tempo que nossos “amigos” colonizadores recebem-nos com mensagens do tipo “Venham apreciar as belezas que nos tornam infinitamente superiores a vocês, deixem seu rico dinheirinho conosco e caiam fora” - que, nas últimas décadas, vem sendo bastante utilizada também pelos estadunidenses - e que nós, brasileiros e sul-americanos em geral, ou fingimos não entender ou não levamos muito a sério.

É evidente que são muito raros os que apreciam que seu lar seja tomado por invasores de outras terras. Portanto, em certa medida, esse tipo de atitude por parte dos europeus e dos norte-americanos é até compreensível, não totalmente desprovido de argumentos. Mas as motivações por trás de tais ingressos sem convites podem dizer se, de fato, é justa a expulsão dos “invasores”, uma vez que é também evidente que não são muitos os que abandonam seu próprio lar para tentar a sorte em terras estranhas por um simples capricho. Por exemplo: se você põe fogo ou destrói a casa do seu vizinho, só com muita cara de pau reclamará se ele decidir armar uma barraca no seu quintal. E foi algo precisamente análogo a esta alegoria o que, de fato, sucedeu e vem sucedendo há um período já desmesuradamente extenso: não só a América Latina, mas também a África e a Ásia, de tão abjetamente exploradas pelos imperialismos de todos os tempos e de tão desumanamente viradas de ponta-cabeça por uma série de manipulações políticas e econômicas – quando não, por decisivas e sangrentas intervenções militares, tanto direta quanto indiretamente – viram-se, em virtude de todas essas tragédias impostas, vitimadas por grande parte das desgraças sociais que teimam em destituir a maioria das nações desses continentes de quaisquer chances relativas a uma verdadeira entrada no chamado Primeiro Mundo; expostos aos piores males que acometem a humanidade a milênios e que, por conta de toda essa indústria do mais-do-mesmo, insistem em se perpetuar nas populações destes infelizes países, seus cidadãos não vêem outra saída que não seja arrumarem as trouxas para tentar a sorte na casa de seus carrascos.

Um dos estudantes citados no começo desta crônica, Pedro Lima, que, junto com Patrícia Rangel, também deportada, ia para um Congresso em Lisboa e apenas fazia escala em Madri, sentindo seus direitos ameaçados após se ver durante várias horas detido e confinado numa sala de poucos metros quadrados, sem água e luz escassa, com muitos outros brasileiros e também com venezuelanos e africanos, decidiu reclamar com um dos policiais da imigração que os vigiavam na saleta. Disse-lhe que não, aquilo não estava certo, que eles estavam se sentindo humilhados, que estavam sendo tratados como cachorros.

- Mas vocês são cachorros – respondeu-lhe prontamente o policial.

Engraçado é saber que este policial é descendente dos mesmos espanhóis que, em meados do século XVI - e durante os subseqüentes séculos – invadiram o continente, à época, recentemente descoberto e batizado de América, e foram, juntamente com os portugueses, responsáveis por um dos maiores massacres de etnias já registrados na história, matando milhões e milhões de nativos pré-colombianos, coincidentemente, antepassados de muitos dos cidadãos que, como Pedro Lima, continuam a ser periodicamente humilhados e mal-tratados ao tentar obter um mísero retorno do todo que lhes foi vilipendiado já há muito tempo antes de nascerem.

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Considerações humorístico-políticas

O Brasil é um país muito engraçado. Tanto no sentido de intrigante quanto no sentido mesmo de cômico. Principalmente no sentido cômico. Como diria o Macaco Simão, é o país da piada pronta. E digo mais: além de pronta, a piada já vem devidamente executada pelos humoristas acidentais (ou melhor seria dizer, incidentais) do "causo" em si, que se desdobram em performances memoráveis em todas as cenas e que, além de nos presentearem com tais apresentações, não se incomodam em, muitas das vezes, serem a própria piada em si.

Como o maior exemplo da atualidade, temos o excelentíssimo senhor senador e presidente do Senado em licensa, Renan Calheiros, míster na representação de cordeiro em pele de lobo, de honesto cidadão injustamente perseguido por secretos vilões da democracia brasileira, que insistem em vasculhar tão ético passado em busca de inexistentes canalhices; perfeito na encenação do tragicômico herói envolto em turbutentas emboscadas armadas pelos seus inimigos e que gradativamente vai escapando de todas elas - enquanto mata o espectador de risos.

O senhor senador Renan Calheiros entra agora - ou já entrou há muito tempo, quem sabe - ao inigualável hall de humoristas do qual fazem parte figuras do calibre de Severino Cavalcanti, Roberto Jefferson, Fernando Collor de Melo, Salvatore Cacciola, Paulo Maluf, Celso Pitta - a lista é extensa. Cada qual autor de obras de valor inestimável para a cultura brasileira - e por que não dizer, mundial, universal. Mas há algo em nosso querido Renan que salta aos olhos e que, por mais que outros monstros sagrados do teatro nacional tenham se aproximado, não chegam a fazer frente ao dote principal do humorista Calheiros: o olhar. Olhar que desafia os deuses. Olhar que avista a presa a quilômetros de distância; carregado de algo que, podem até dizer que é cinismo, mas a mim se assemelha mais à serena paz dos justos. Olhar que parece dizer: "Eu posso até ser a piada, mas estou me divertindo mais que todos vocês". Enfim, um olhar como poucos.

Bem-aventurado seja o povo brasileiro, que pode se gabar de ter como conterrâneos Renan Calheiros e outros tantos talentosos artistas, todos, sem dúvida, de nível internacional, com atuações marcantes, fazendo-nos rir como riem mulheres divertidamente estupradas por hilários desconhecidos; ou gargalhar como mendigos que são alegremente humilhados por irreverentes transeuntes; sorrir convulsivamente como sorriem convulsivamente pais que vêem animadamente mulher e filhos passar fome com muita graça; cascar o bico como espirituosas mães que assistem, inertes, à burlesca entrada dos filhos nas mãos do tráfico.

Bom, acho que já deu pra entender.