domingo, 30 de março de 2008

O cachorro

O Universo, que engraçado, às vezes tem dessas coisas. De tanto seguir esse fluxo tão aparentemente imutável e sério, o seu âmago amalucado e tendendo para o absurdo acaba por se revelar, não raro, quando menos se esperava e de maneira incondicionalmente aparatosa. O sujeito passa a vida inteira observando-o de uma forma e, de repente, de um minuto para o outro, tudo pode mudar; sem que se saiba como ou por que, o cosmo nos surpreende, irremediavelmente.

Veja você o que aconteceu com o Paulo. Numa dessas manhãs meio lentas demais, dessas que parecem nunca se afastar muito das onze horas, trazendo à tona um ar modorrento e apático que só a visão do almoço próximo consegue suavizar um pouco, Paulo encontrava-se esparramado numa das cadeiras do terraço de sua casa, sozinho, fingindo que lia alguma notícia num jornal de dias atrás enquanto torcia secretamente que uma brisa fugidia viesse apaziguar o calor quase sufocante, quando o Extraordinário, subitamente, bateu a sua porta - ou melhor, a sua perna. Era o seu cachorro, o Pêite (sabe como é, Paulo tentou lhe dar a alcunha de Black Dog, mas nem esse nem outro nome pegou, até que um de seus amigos, certo dia, fazendo uma brincadeira com o termo ‘carrapato’, gritou “Fala, Carrapêite!”, causando gargalhada geral e, sem querer, batizando o cão com esse nome, que mais tarde derivou para “Pêite”), que havia apoiado as patas dianteiras em suas coxas e pedia inconfundivelmente uma rodada de carinhos. Meio sem dar muita atenção e sem tirar os olhos do jornal – agora ele tinha se interessado por alguma informação noticiada, algo a ver com OVNI’s – Paulo principiara a usual série de movimentos rítmicos atrás da orelha de seu animal de estimação, quando ouviu, em alto e bom tom, uma voz muito próxima, que disse:

– Muito obrigado, Paulo.

Ele, que estava distraído lendo a notícia ufológica, tanto se assustou que amassou o jornal quase todo ao se endireitar rapidamente à cadeira, à procura da possível fonte da voz sorrateira. Após vasculhar tenazmente todo o ambiente ao redor e chegar à conclusão de que não havia indícios que pudessem sugerir alguma presença oculta – bom, pelo menos, viva – seus olhos detiveram-se no semblante plácido e abobalhado de Pêite, que lhe retribuía o olhar, e Paulo cogitou por segundos que a voz misteriosa - que tinha um quê masculino, apesar de meio pueril – pudesse ter se originado daquela figura engraçada e familiar, e sua fronte desanuviou-se ligeiramente com a comicidade despertada por aquele pensamento, milésimos de segundos antes de descartar a fugaz hipótese e uns poucos milésimos a mais antes de aturdir-se por completo ao observar Pêite dizer, como que respondendo a sua feição inquiridora:

– Sim, Paulo, fui eu mesmo quem falou.

Paulo mal teve tempo de esboçar um fragoroso “Ãhn?!” e já estava no meio de uma espécie de sermão canino, onde Pêite tratara logo de explicar o que estava acontecendo. Contara-lhe que os cães – ora, os cães – há muito tempo que sabiam falar, e que não apenas eles, mas boa parte da fauna terrestre, considerada irracional pelos homens – que Pêite chamou de “ingênuos” – há muito haviam desenvolvido sua comunicação, e num grau tão amplo que eles (os animais) até tinham criado um tipo de organização oculta, que secretamente guiava os rumos do mundo, deixando o ser humano na sua ilusória condição de criatura dominante para que ele, por orgulho, não se aprofundasse nos segredos da Natureza.

– Mas, se são vocês que controlam tudo, por que deixaram a humanidade causar o desequilíbrio ambiental que pode acabar por erradicar a vida na Terra? – Perguntou-lhe Paulo, numa forçada descrença a tudo que ouvira até agora, talvez para tentar ganhar tempo enquanto esperava aquele óbvio delírio passar, ou para escamotear, em vão, o embaraço e a confusão na qual todo seu ser estava imerso naquele momento.

– Isso não é da minha alçada – respondeu-lhe gentilmente Pêite, com sua vozinha que lembrava a de um pokémon, contrastando com sua eloqüência e seriedade. – Mas, quando você diz “toda a vida na Terra”, acredito que esteja se referindo apenas aos da sua espécie. Ou você acha que nós, os verdadeiros animais racionais, não saberíamos nos adaptar às novas transformações?

– Pode até ser... Mas e quanto aos animais extintos ou em ameaça de extinção, hein? Por que então eles estão morrendo?

– Eles não estão morrendo. Apenas estão sendo transferidos a localidades as quais vocês não têm acesso.

Depois, respondendo a outra pergunta de Paulo, Pêite lhe revelou que havia pedido permissão à secreta organização dos animais para poder agradecer pessoalmente – pra não dizer, “caninamente” – a seu dono por todos esses anos de bons tratos e de um carinho fenomenal, pois sua técnica de afagar repetidamente atrás da orelha de Pêite não tinha par na história paralela dos cães.

– E também para que eu tenha outro nome. Nunca gostei muito de Pêite. Quero ser chamado de Garrincha.

– Garrincha?! – Consternou-se Paulo, não entendendo. – Por quê?

– Uma homenagem a um humano que admiro muito.

Após o ocorrido, Pêite nunca mais voltara a falar. Continuou a ser o mesmo cãozinho de olhar simpático e aparvalhado de sempre, correndo atrás das visitas e deixando o tapete da sala constantemente encharcado. Paulo, que até o fim da vida, passou a ter um respeito visível por todo e qualquer animal com que entrara em contato desde então, mesmo sem buscar comprovar as revelações de seu cachorro – às vezes, até duvidando de que aquilo tinha realmente acontecido – , não deixou de brincar com este, apesar de uma ansiedade desmedida nascer em seu peito sempre que se encontravam a sós, e nem alterou de forma muito drástica sua relação com Pêite, ou melhor, Garrincha. Essa, aliás, foi a única mudança realmente significativa após o episódio e ninguém entendeu porque Paulo passara a chamar Pêite, de uma hora para a outra, de Garrincha, provocando gargalhadas e incompreensão em todos, mas que sumiram com o tempo.

O novo nome, a propósito, pegou.

quarta-feira, 26 de março de 2008

Sambas e touradas

Parece encaminhar-se de volta à normalidade a situação diplomática entre Brasil e Espanha, após denúncias de maus-tratos e discriminação feitas por dois estudantes brasileiros barrados em território espanhol e repatriados em seguida, que desencadeou uma espécie de tensão velada entre ambos os países. As denúncias tiveram ainda maior impacto pois chamaram a atenção para a considerável freqüência com que tais cenas têm-se repetido, não apenas na Espanha, mas também em vários outros países europeus e nos Estados Unidos.

Não é de hoje que o problema da xenofobia, principalmente na Europa, gera esse tipo de discussão, de polêmica. A questão dos imigrantes ilegais, geralmente provenientes de países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, permanece como uma constante nos temas discutidos dentro desses países (os desenvolvidos, claro), seja num desses cafés esnobes que abundam por lá, seja nas disputas eleitorais, notadamente as atuais (Sarkozy, na França, foi um dos que se elegeram com promessas de apertar o cerco aos estrangeiros ilegais). Não que essa persistência tenha sido por falta de cara feia européia: há muito tempo que nossos “amigos” colonizadores recebem-nos com mensagens do tipo “Venham apreciar as belezas que nos tornam infinitamente superiores a vocês, deixem seu rico dinheirinho conosco e caiam fora” - que, nas últimas décadas, vem sendo bastante utilizada também pelos estadunidenses - e que nós, brasileiros e sul-americanos em geral, ou fingimos não entender ou não levamos muito a sério.

É evidente que são muito raros os que apreciam que seu lar seja tomado por invasores de outras terras. Portanto, em certa medida, esse tipo de atitude por parte dos europeus e dos norte-americanos é até compreensível, não totalmente desprovido de argumentos. Mas as motivações por trás de tais ingressos sem convites podem dizer se, de fato, é justa a expulsão dos “invasores”, uma vez que é também evidente que não são muitos os que abandonam seu próprio lar para tentar a sorte em terras estranhas por um simples capricho. Por exemplo: se você põe fogo ou destrói a casa do seu vizinho, só com muita cara de pau reclamará se ele decidir armar uma barraca no seu quintal. E foi algo precisamente análogo a esta alegoria o que, de fato, sucedeu e vem sucedendo há um período já desmesuradamente extenso: não só a América Latina, mas também a África e a Ásia, de tão abjetamente exploradas pelos imperialismos de todos os tempos e de tão desumanamente viradas de ponta-cabeça por uma série de manipulações políticas e econômicas – quando não, por decisivas e sangrentas intervenções militares, tanto direta quanto indiretamente – viram-se, em virtude de todas essas tragédias impostas, vitimadas por grande parte das desgraças sociais que teimam em destituir a maioria das nações desses continentes de quaisquer chances relativas a uma verdadeira entrada no chamado Primeiro Mundo; expostos aos piores males que acometem a humanidade a milênios e que, por conta de toda essa indústria do mais-do-mesmo, insistem em se perpetuar nas populações destes infelizes países, seus cidadãos não vêem outra saída que não seja arrumarem as trouxas para tentar a sorte na casa de seus carrascos.

Um dos estudantes citados no começo desta crônica, Pedro Lima, que, junto com Patrícia Rangel, também deportada, ia para um Congresso em Lisboa e apenas fazia escala em Madri, sentindo seus direitos ameaçados após se ver durante várias horas detido e confinado numa sala de poucos metros quadrados, sem água e luz escassa, com muitos outros brasileiros e também com venezuelanos e africanos, decidiu reclamar com um dos policiais da imigração que os vigiavam na saleta. Disse-lhe que não, aquilo não estava certo, que eles estavam se sentindo humilhados, que estavam sendo tratados como cachorros.

- Mas vocês são cachorros – respondeu-lhe prontamente o policial.

Engraçado é saber que este policial é descendente dos mesmos espanhóis que, em meados do século XVI - e durante os subseqüentes séculos – invadiram o continente, à época, recentemente descoberto e batizado de América, e foram, juntamente com os portugueses, responsáveis por um dos maiores massacres de etnias já registrados na história, matando milhões e milhões de nativos pré-colombianos, coincidentemente, antepassados de muitos dos cidadãos que, como Pedro Lima, continuam a ser periodicamente humilhados e mal-tratados ao tentar obter um mísero retorno do todo que lhes foi vilipendiado já há muito tempo antes de nascerem.

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Considerações humorístico-políticas

O Brasil é um país muito engraçado. Tanto no sentido de intrigante quanto no sentido mesmo de cômico. Principalmente no sentido cômico. Como diria o Macaco Simão, é o país da piada pronta. E digo mais: além de pronta, a piada já vem devidamente executada pelos humoristas acidentais (ou melhor seria dizer, incidentais) do "causo" em si, que se desdobram em performances memoráveis em todas as cenas e que, além de nos presentearem com tais apresentações, não se incomodam em, muitas das vezes, serem a própria piada em si.

Como o maior exemplo da atualidade, temos o excelentíssimo senhor senador e presidente do Senado em licensa, Renan Calheiros, míster na representação de cordeiro em pele de lobo, de honesto cidadão injustamente perseguido por secretos vilões da democracia brasileira, que insistem em vasculhar tão ético passado em busca de inexistentes canalhices; perfeito na encenação do tragicômico herói envolto em turbutentas emboscadas armadas pelos seus inimigos e que gradativamente vai escapando de todas elas - enquanto mata o espectador de risos.

O senhor senador Renan Calheiros entra agora - ou já entrou há muito tempo, quem sabe - ao inigualável hall de humoristas do qual fazem parte figuras do calibre de Severino Cavalcanti, Roberto Jefferson, Fernando Collor de Melo, Salvatore Cacciola, Paulo Maluf, Celso Pitta - a lista é extensa. Cada qual autor de obras de valor inestimável para a cultura brasileira - e por que não dizer, mundial, universal. Mas há algo em nosso querido Renan que salta aos olhos e que, por mais que outros monstros sagrados do teatro nacional tenham se aproximado, não chegam a fazer frente ao dote principal do humorista Calheiros: o olhar. Olhar que desafia os deuses. Olhar que avista a presa a quilômetros de distância; carregado de algo que, podem até dizer que é cinismo, mas a mim se assemelha mais à serena paz dos justos. Olhar que parece dizer: "Eu posso até ser a piada, mas estou me divertindo mais que todos vocês". Enfim, um olhar como poucos.

Bem-aventurado seja o povo brasileiro, que pode se gabar de ter como conterrâneos Renan Calheiros e outros tantos talentosos artistas, todos, sem dúvida, de nível internacional, com atuações marcantes, fazendo-nos rir como riem mulheres divertidamente estupradas por hilários desconhecidos; ou gargalhar como mendigos que são alegremente humilhados por irreverentes transeuntes; sorrir convulsivamente como sorriem convulsivamente pais que vêem animadamente mulher e filhos passar fome com muita graça; cascar o bico como espirituosas mães que assistem, inertes, à burlesca entrada dos filhos nas mãos do tráfico.

Bom, acho que já deu pra entender.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

O porão secreto

Floyd era um garoto estranho. Além de estranho, inteligente. Além de estranho e inteligente, muito, muito curioso. Curioso do tipo que não se aquietava até ir a fundo em suas dúvidas, em esmiúçá-las, em, uma a uma, retirar-lhes do emaranhado de teias que lhe compunham as idéias - idéias estas que eram várias, inúmeras, pois ele era bastante inteligente, do tipo que percebia que sua inteligência de nada valia em comparação à totalidade do Universo, que todo o conhecimento por ele adquirido não passava de um sopro vulgar no surreal tufão de mistérios da existência. Tudo isso, convenhamos, tornava-o um jovem deveras estranho, do tipo talvez excessivamente paranóico, um tanto quanto avoado, demasiadamente inconstante. Enfim.

O fato é que ele, já há um tempo considerável, andava também bastante apreensivo, pois tinha se metido numa enrascada. Em mais uma de suas noites de insônia pensando na vida e sondando o Insondável, vagando pela sua casa, sem saber como ou por que, possivelmente guiado por uma força sobrenatural ou algo do tipo, ele descobrira um vão secreto no corredor que dava para os quartos. Guiado pela sua curiosidade natural, ele adentrara o ambiente recém descoberto, não sem uma oportuna cautela e algum receio. Tateando às cegas o espaço a sua frente, agarrara uma cordinha suspensa no ar que, ao puxá-la, acendera uma luzinha logo acima de sua cabeça, iluminando todo o compartimento ao seu redor.

Ainda meio que sem acreditar no que havia descoberto, sentira-se invadir por uma espécie de calma alegria, seus olhos brilhavam de excitação: o porão, desmedidamente grande para algo escondido no subsolo de sua casa, estava recheado de estantes e prateleiras, todas elas abarrotadas de livros. Incontáveis livros! Seu êxtase era tal que ele nem ao menos dera trela a uma perguntinha que ficara incomodando a sua felicidade: "Mas de onde surgiu esse monte de livros escondido embaixo da minha casa?!" Talvez - e eu digo apenas "talvez", porque nunca se sabe como trabalha o Destino, essa entidade maluca e sempre disposta a nos pregar as mais imprevisíveis peças - se não tivesse ignorado esta perguntinha e tentasse desvendá-la, ele pudesse ter evitado o problema no qual se meteu.

Não vendo mais perigo naquele porão secreto além dos que já sabidamente ignorava, tratara de manter segredo sobre seu achado, frequentando-o sempre às escondidas, todas as madrugadas, assim que todos dormiam e ficava até quase o nascer do sol. Sua mãe até notara o aumento repentino de suas já costumeiras olheiras, mas nada comentara. Sua namorada também estranhou um pouco e lhe fez algumas perguntas nesse sentido, mas ele as contornava com tamanha maestria que ela achou que fosse apenas mais uma de suas estranhezas. Na faculdade, ele já tinha sido apelidado de "turista", pois raramente dava as caras por lá. Ninguém desconfiava do verdadeiro motivo de tais mudanças. E Floyd nunca tinha sido tão feliz.

Bom, pelo menos até o fatídico dia em que suas preocupações começaram. Numa de suas madrugadas no porão secreto, deparara-se com um livro de título, digamos, bastante sugestivo: O Livro Proibido. Apesar da hesitação inicial, seu lado curioso vencera a batalha contra a cautela e a prudência e ele terminara por abrir o livro. Imediatamente, este libertara-se de suas mãos, passando a girar descontroladamente no ar, suas páginas dançando como se à mercê de um vento muito forte. Enquanto isso, aos poucos, uma espécie de névoa brotava do centro daquele inesperado acontecimento e, por fim, tomara a forma de uma mulher, loura, bastande bonita mas de aspecto severo, com uma roupa preta que lembrava mais um biquíni. De capa.

Suas palavras foram tais, com tamanhas dureza, crueza e maldade, que evitarei expô-las aqui, na íntegra, com o objetivo de poupar o leitor, mas o seu teor era basicamente o seguinte: ela era ninguém mais, ninguém menos que Éris, a deusa grega da discórdia, e aquele porão lhe pertencia. Ele (o porão) não estava necessariamente no subterrâneo da casa de Floyd: habitava uma região imperscrutável do espaço-tempo e fixava-se ao alcance das pessoas que ela escolhia "ao acaso" para passar por determinados testes, no caso particular de Floyd, o da curiosidade. Mas a punição era sempre a mesma: como nosso "herói" não passara no teste - ele abriu o Livro Proibido, fato que deveria ter evitado, controlando seu lado imprudente - precisaria provar que era querido pelas pessoas que amava ou sumiria. Isso mesmo: Éris lhe pusera um feitiço que mediria a quantidade de carinho que ele recebia das pessoas ao seu redor e, se essa quantidade ficasse abaixo do que ela considerava aceitável, ele seria retirado da realidade à qual pertencia e ficaria preso durante um prazo indeterminado numa outra dimensão.

E então chegamos ao motivo da apreensão que Floyd passara a sentir no começo de nossa história. Ele tinha três meses para passar pela prova de Éris e, para tal, poderia se valer de quaisquer artifícios, com a exceção óbvia de revelar a alguém os segredos sobre a tarefa, Éris ou sobre o porão secreto. E mais: quanto mais ele alterasse a espontaneidade das pessoas (pedindo ou implorando para elas serem mais carinhosas com ele) mais aumentaria a "quantidade aceitável" a ser alcançada, ou seja, mais difícil se tornaria a prova. Portanto, ele deveria agir com muita cautela.

No início, Floyd resolveu não interferir de maneira muito grosseira na atitude das pessoas, apenas tratou de reaproximar-se delas, visto que há muito ele andava afastado de todos, não só pela descoberta do porão, mas também porque, antes disso, ele já havia se tornado um pouco fechado demais em si mesmo, numa espécie de arrogância contida, um tipo de egoísmo interno mascarado de altruísmo, possivelmente uma das razões para sua escolha "aleatória" por Éris. Esse fator tornou sua tentativa de reaproximação mais complicada do que ele esperava e o tempo se tornava cada vez mais escasso. Por isso, decidiu que deveria pedir mais carinho e atenção às duas pessoas que acreditava serem as que mais valiam o risco de aumentar a quantidade exigida pela deusa da discórdia - sua mãe e sua namorada - pois, ele acreditava, teriam muito amor e atenção a lhe oferecer caso ele lhes reclamasse sobre o descaso que vinha sentindo da parte delas, devidamente "computados" pelo feitiço "contador" que Éris tinha posto em seu corpo.

Com sua mãe, tudo saiu conforme ele imaginava: ela ouviu com atenção as reclamações que seu filho lhe fizera e mudou em relação a ele, tratando-o de maneira bem melhor. Floyd, finalmente, sentiu-se confiante de que poderia, sim, passar pela ingrata tarefa que lhe fora imposta. Mas suas esperanças se desvaneceram por completo ao fazer o mesmo com sua namorada: ela prontamente se irritou com a reclamação, porque acreditava que já dava todo o carinho e atenção que podia e era bom que Floyd se desse por satisfeito, hum! E o pobre Floyd, que esperava receber com sua salvadora tentativa a quantidade de amor necessária para provar àquela deusa maldita que era querido pelas pessoas que amava, viu acontecer totalmente o contrário: em vez de atenção, recebeu indiferença; avessamente ao carinho, viu a frieza tomar forma ainda mais concreta.

Depois desse acontecido, resignou-se. "Talvez", ele pensava, "eu realmente não seja muito querido pelas pessoas e mereça a punição reservada a mim". Com essa reflexão, apesar de um pouco taciturno, seu semblante denotava uma certa calma, como a de quem quer simplesmente aproveitar o restinho de tempo de que ainda dispõe, e passou seus últimos dias sem nenhuma outra tentativa de fazer com que pudesse "somar mais carinho" ao que já havia conseguido. No fim, desapareceu sem deixar vestígios, o que causou comoção geral entre seus conhecidos. Perguntavam-se se sua mudança de atitude nos últimos tempos não estaria definitivamente ligada ao seu desaparecimento e auto-avaliaram-se a respeito da forma que haviam procedido com Floyd.

Muitos arrependeram-se.

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

Há males que vêm para o Mal

(publicado originalmente em 7 de junho de 2005)

O Maranhão, o Maranhão. Um estado que não sabe muito bem se é do Norte ou do Nordeste, dividido entre os dois conceitos e que, no fim, acaba tendo características só suas. Um misto entre Floresta Amazônica e Sertão, sem ser, especificamente, nenhum dos dois. Um estado que, talvez pelo fato de ter esse aspecto único, não tenha referência de como aproveitar seus recursos, desde o potencial turístico até a nossa diversidade extrativista. Mas isto não é desculpa. A grande verdade, que, de tão grande, não se esconde mais, é que este é um estado doente, infectado por uma Praga.

Isso mesmo, 'Praga' com 'P' maiúsculo. Pois ela atende pelo nome de Sarney. José Sarney. O Vírus, a Praga, a Bactéria, que há muito tempo contaminou o corpo político maranhense e se alastrou por todo o seu território, em todos os sentidos. É uma vergonha. É como se fosse a máfia maranhense, com toda a forma e conteúdo de organização criminosa, mas que posa de fundação, com o nobre objetivo de tirar o Maranhão do buraco - enquanto, às escondidas, cava mais e mais. E o cabeça é ele, o caridoso, o letrado, o humilde Sarney. Um homem que sempre lutou pelo desenvolvimento do Maranhão, tanto econômica quanto socialmente, com o propósito de melhorar as condições de vida de toda a população miserável. Não apenas ele, mas todos os seus bravos seguidores, como João Alberto, Edson Lobão e, claro, sua filha, Roseana Sarney.

Seria muito bom crer em toda essa baboseira se não fosse exatamente por isso: é pura baboseira, mentira, enganação das brabas. A oligarquia Sarney dominou o Maranhão com a finalidade de encher os próprios bolsos com dinheiro dos cofres públicos e, principalmente, para manter-se no poder. E não fica só no âmbito estadual. Após seu mandato como presidente da República, Sarney (o original, óbvio, não os genéricos) deixou que se destacassem duas facetas do seu inescrupuloso caráter: um cinismo desmedido, pois se passava por presidente eleito democraticamente pelo voto direto, mas, como todos sabem, elegeu-se pelo Colégio Eleitoral como vice de Tancredo Neves, assumindo a presidência quando da morte deste; e uma sede insaciável de poder, que aumentou com o fim de sua gestão presidencial, levando-o a agarrar-se a todo e qualquer governo federal, despojado de ideologias ou princípios, apenas pelo prazer de mandar, utilizando-se de todos os meios para atingir o seu fim.

E, enquanto isso, o Maranhão se atrasa. Recentemente, saiu uma pesquisa inédita do IBGE, revelando a quantas andam os mais de cinco mil municípios brasileiros. Entre os dados, confirmou-se a alcunha do Maranhão de estado mais miserável: das cem cidades brasileiras mais pobres, oitenta e três são maranhenses. Oitenta e três!!! Inacreditável. Esse é o tipo de informação que não pode passar incólume, que não pode ser ouvida ou lida sem que se tome alguma providência, sem que brote no peito uma espécie de revolta, de insatisfação. É, no mínimo, um assunto que deve incondicionalmente ser noticiado pela imprensa. Mas, então, por que não saiu em nenhum jornal?

A resposta é tão simples quanto triste: porque a imprensa maranhense serve aos interesses da oligarquia Sarney. Os principais meios de comunicação são dele, a TV Mirante e o jornal O Estado do Maranhão, e, mesmo os outros, como o Jornal Pequeno, que se diz "contra a oligarquia dos Sarneys", não passam de fachada, uma farsa, que simplesmente representam uma oposição para que as pessoas tenham a ilusão de ter uma imprensa verdadeiramente imparcial (sem trocadilhos). E, como a "fundação José Sarney" tem, hoje, uma infinidade de "integrantes", incontáveis fatos não são noticiados para atenderem aos interesses de todos esses beneficiados. Casos como o do garoto de 8 anos estuprado no banheiro do São Luís Shopping Center na semana passada ou do rapaz morto coberto de areia no Marafolia 2004 (ah, você não sabia?) não são noticiados porque não são vantajosos para Sarney e sua corja. Sem contar nos escândalos de suspeita de desvio de dinheiro público durante o governo de Roseana Sarney, filha do Dono do Mar(anhão), como o caso Lunus, que a tirou da corrida presidencial ou o caso da Estrada Fantasma entre Paulo Ramos e Arame, onde o Governo do Estado pagou 33 milhões de reais a uma construtora (também ligada à Família) para fazer uma estrada que nunca saiu do papel.

Todas essas revelações são importantíssimas, mas há uma ainda não dita, talvez nem tão gigantesca quanto algumas das já citadas, mas que impressiona pelo seu atrevimento e pela sua incontestável cara-de-pau: durante o governo João Alberto, foi doado (leia-se aqui: entregue de mão beijada) pelo Estado à Fundação da Memória Republicana o Convento das Mercês, um prédio tombado pelo Patrimônio Histórico da Humanidade. Um fato apenas "corriqueiro" se não fosse completamente inconstitucional. A Constituição Brasileira diz claramente que prédios tombados não podem ser vendidos ou doados, pois faz parte da cultura do povo, é propriedade totalmente pública. E, no entanto, foi feito: Sarney prontamente se apossou do que é nosso (pois a tal Fundação da Memória Republicana logo mudou de nome para Fundação José Sarney - discreto, não?), fazendo do prédio um culto a sua própria imagem, incluído, inclusive, um local onde ele futuramente será enterrado. Pior: na época em que o convento foi doado, ele estava passando por uma reforma e, após a doação, ele continuou sendo reformado. Em outras palavras: ele se apossou de um patrimônio histórico do estado e ainda o reformou com dinheiro público! E tudo isso feito às claras, na frente de todos. Tem cabimento?

Um ditado muito difundido nos dias de hoje é aquele que diz que há males que vêm para o bem. Ditame este que expressa algo do tipo: “Bem, aparentemente isto é ruim, mas, no fundo, possibilitará que algo extremamente melhor ocorra”. Entretanto, como Sarney faz questão de nos lembrar, há males que, irremediavelmente, vêm para o mal.